sábado, 17 de dezembro de 2011

Entrevista: Pedro Pereira

A ARTE, AS IDEIAS E AS PERALTICES DE PEDRO PEREIRA

Ele é poeta. É artista plástico. Foi apelidado de Peralta nos incendiários tempos em que transformava em uma usina de performances os palcos onde a banda Cabeças Errantes se apresentava. Lançou livro. Expôs arte em tela e em camiseta. Sobretudo, nosso entrevistado do mês, se expôs. Nunca se furtou de mostrar a que veio. Inovador, construiu trilhas diferentes do tradicional. Pedro Pereira da Silva nasceu em Passa e Fica, em 1963. Mas ficou por lá apenas seis anos. Natal foi a cidade onde realmente ele passou e ficou. Aqui, construiu sua história e tornou-se reconhecido como ícone de diversas artes. Entrevistar Pedro Pereira, mesmo que via Internet (por meio do Skype), foi um prazer e uma honra. Melhor ainda porque tive ao lado, caprichando nas indagações, o amigo jornalista Roberto Fontes. Diante de dois Robertos, Pedro Pereira não fugiu de nenhuma pergunta. O que ele não lembrava – algumas passagens do período no qual esteve em coma, devido a um acidente vascular cerebral – sua esposa e companheira Alda Pereira gentilmente ofereceu as respostas. O resultado você confere a seguir. As fotos foram cedidas pelo próprio entrevistado, através do seu Facebook. (robertohomem@gmail.com)


ZONA SUL – Vamos beber alguma coisa enquanto conversamos, Pedro? Eu e o Roberto Fontes estamos abrindo uma garrafa de vinho...
PEDRO – Ô coisa boa! Só que eu não bebo mais. Desde o AVC (acidente vascular cerebral) eu não bebo mais, não. Só tomo água e suco.
ZONA SUL – Um suquinho de caju também é uma delícia!
PEDRO – Eu gosto de qualquer tipo de suco: de caju, manga, mangaba, graviola...
ZONA SUL – Bebidas à parte, vamos, então, à entrevista? Você morou muito tempo em Passa e Fica?
PEDRO – Somente seis anos.
ZONA SUL – O que você recorda desse tempo?
PEDRO – Recordo pouca coisa. Uma delas é que no quintal da minha casa tinha um pé de imbu muito grande. Eu comia muito imbu. Não lembro de mais muita coisa. Sequer lembro de algum amigo daquela época.
ZONA SUL – De Passa e Fica você mudou-se para onde? Qual foi o motivo?
PEDRO – Para Natal. A mudança foi devido ao famoso êxodo rural. Quando o meu avô morreu, meus pais resolveram fixar residência em Natal. Minha família é de agricultores. Meu avô se chamava Antônio Pereira da Silva. O nome do meu pai era José Pereira da Silva, e o da minha mãe, Damiana Francisca da Conceição. Viemos para Natal morar no bairro de Tirol, na Praça Augusto Leite. Na época, anos 1970, meu pai arrumou um emprego de pedreiro e, a minha mãe, de lavadeira. Eu fui estudar na Escola Estadual Manoel Dantas.
ZONA SUL – Quais suas primeiras lembranças de Natal?
PEDRO – Cheguei aqui criança. Lembro que me impressionou bastante ver o grande número de carros, nas ruas. Eu também nunca tinha visto aqueles prédios altos. Sofri o impacto natural de quem sai do interior, do mato, e chega na cidade. A diferença é radical, apesar de nem sempre a gente perceber de imediato. A mudança vai se dando devagarzinho, vai se lapidando na mente. Em resumo: o progresso foi o grande impacto que senti. Também me surpreendi com a quantidade de pessoas nas ruas e a diferente forma de comportamento, dos cortes dos cabelos e do vestuário.
ZONA SUL – Nessa época você já sentia alguma curiosidade com relação à arte?
PEDRO – Desde o meu primeiro ano no colégio eu já me destacava por gostar de declamar poemas e pintar quadros com os amigos... Arte já era comigo, desde aquela época. Apear de eu não ter, naquela época, nenhum conhecimento de nada, já se percebia meu interesse pela poesia e pela pintura.
ZONA SUL – Algum antepassado seu enveredou pelo caminho da arte?
PEDRO – Que eu saiba, não. Nem repente, nem viola, nem nada. Pode ter havido algum, mas eu não fiquei sabendo. Minha mãe nasceu em Araruna, na Paraíba. Meu pai é natural de Passa e Fica. O meu interesse pela arte se deu em virtude da escola e pela influência que recebi de um artista: Dorian Gray Caldas.
ZONA SUL – Como você o conheceu? Qual idade tinha?
PEDRO – Quando tinha onze anos, fui adotado por uma família que morava vizinho a Dorian Gray. Minha mãe lavava roupas na casa dessa família com quem fui morar. Eles pediram que eu fosse morar com eles e a minha mãe me doou. Morei 15 anos nesse novo lar.
ZONA SUL – O que você achou disso? Ficou triste?
PEDRO – Que nada, eu curti muito: passei a ter tudo o que eu não tinha em casa.
ZONA SUL – Pelo visto você continuou tendo a sua família original e ganhou mais uma.
PEDRO – Exatamente. Passei a ter duas famílias. Eu sempre voltava em casa para ver a minha mãe. Vera Montenegro Pires e Afrânio Pires foram as pessoas que me adotaram. Ele era comerciante, tinha uma distribuidora de livros lá na Ribeira. Também vendia caneta, papel...
ZONA SUL – Após ser adotado você continuou estudando na mesma escola?
PEDRO – Estudei até a quarta série na escola Manoel Dantas, depois fui para a Escola Estadual Alberto Torres, perto da Praça das Flores.
ZONA SUL – O que mudou na sua vida, após a troca de família?
PEDRO – Mudou para melhor: passei a ter maior facilidade e condições para sair de casa e visitar outros lugares que eu não conhecia. Deixei de me limitar a um só reduto. Passei a frequentar lugares como uma granja, em Extremoz, e a praia de Muriú, no veraneio.
ZONA SUL – Talvez, para sua futura carreira, o decisivo mesmo nessa época tenha sido você conhecer o vizinho, Dorian Gray. Como foi esse encontro?
PEDRO – Perfeito! Sou da idade da filha de Dorian, a Dione Caldas. Minha mãe de criação,
Vera, era amiga da mulher de Dorian, Vanda. Eu ia lá dar recado de Vera para Vanda. Quando eu entrava, via as tapeçarias de Dorian e também observava ele trabalhar. Um dia ele me percebeu e disse que eu podia entrar, podia olhar ele trabalhando. A partir daí passei a ter acesso livre à casa dele. Eu nem sabia ainda que Dorian era o artista famoso que é até hoje. Mesmo assim, eu achava aquele trabalho muito bonito e inspirador. O ambiente era bastante agradável. Dorian é uma pessoa muito educada, doce, amável e gentil. Ele sempre me tratou muito bem.
ZONA SUL – Dorian chegou a lhe ensinar as primeiras lições das artes plásticas?
PEDRO – Não formalmente, mas, em compensação, ele abriu as portas para eu observá-lo trabalhar. Depois de algum tempo comecei a trabalhar na Construtora Serra Negra. Certamente influenciado pelos trabalhos que vi na casa de Dorian Gray, passei a investir parte do meu salário em arte.
ZONA SUL – O que você fazia nessa construtora?
PEDRO – Eu era apontador. Sabe o que é isso?
ZONA SUL – Você anotava, enquanto os outros trabalhavam...
PEDRO – (risos) É isso mesmo! Eu media a produção dos operários, passava essa informação para as planilhas e enviava relatórios para o escritório. Minha carteira era assinada. Eu investia o salário em mim: comprava livros, discos e objetos de arte, para o meu deleite. Também ajudava em casa.
ZONA SUL – O que você gostava de ler, nessa época?
PEDRO – Não apenas livros relacionados às artes plásticas, mas também biografias de poetas e escritores como Castro Alves, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto. Com relação a música, eu costumava ouvir os discos de Tim Maia, Beatles, Fagner, Ednardo e toda aquela turma do final dos anos 1970, início dos anos 1980.
ZONA SUL – Você também gostava de ouvir rádio?
PEDRO – Sim. Por incrível que pareça, eu gostava de escutar “A Voz do Brasil”. Falando sério! Lá tinha muita informação. Era curioso ouvir. No rádio eu ouvia muito, aos domingos, um programa só de MPB que tocava artistas como Luiz Airão, João Nogueira, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Caetano... Escutava também algumas coisas em ondas curtas.
ZONA SUL – Voltando ao trabalho como apontador: você aproveitou esse emprego para se qualificar intelectualmente e culturalmente, não é mesmo?
PEDRO – Perfeito. Na verdade, nunca tive – nem na época de criança – brinquedos ou bicicletas. Sempre me interessei mais por outros horizontes.
ZONA SUL – Você não brincava com as outras crianças? Não jogava futebol, por exemplo?
PEDRO – Jogava sim, fui goleiro. Só levava pancada. Eu era perna de pau demais.
ZONA SUL – Era tão ruim que escalaram você para o gol...
PEDRO – (risos) É isso aí mesmo!
ZONA SUL – Nessa época em que você passou a gastar seu salário com arte, teve contato também com os artistas locais?
PEDRO – De 1980 em diante, passei a ter contato com vários poetas. Em 1981, lancei um livrinho: “Lutar pela paz”. Era um livro de poesias bem livres, sem preocupação... Não tinha preocupação teórica com nada. O objetivo foi mais de me manter vivo na história, com o pessoal. Foi editado em mimeógrafo. Fiz parte daquela geração com Dorian Lima, Carlos Gurgel, Aloísio Matias, Sofia Gosson, Venâncio Pinheiro e muitos outros que publicavam poemas em cópias mimeografadas ou xerografadas. Era só a nata.
ZONA SUL – Como Natal recebeu o trabalho dessa “geração mimeógrafo”?
PEDRO – Éramos os únicos a fazer arte independente. Nosso trabalho era anarquista. Somente nós fazíamos aquela arte não tradicional. Éramos os loucos.
ZONA SUL – E na música?
PEDRO – O grande guru da música, na época, era Raul Andrade, da Alcateia Maldita. Era o papa, o guru de todos. Ele puxava o bonde. Me inspirei bastante, e até hoje me inspiro nele. Raul não tinha papas na língua, nem era cópia de ninguém: era único, singular, autêntico e muito criativo. Os outros não apresentavam aquela força performática que ele tinha. Paralelo a Raul, tinha também o Gato Lúdico, de Vicente Vitoriano. Nessa mesma época foi que surgiu o Cabeças Errantes.
ZONA SUL – Como apareceu a ideia de criar o Cabeças Errantes?
PEDRO – De uma só vez surgiram várias bandas: Fluidos, Modus Vivendi, Cabeças Errantes...
ZONA SUL – Cabeças Errantes foi a primeira banda da qual você participou?
PEDRO – Foi. Eu fazia as performances e tocava um parangolé lá, uma percussão. Mas eu dizia que o Cabeças Errantes surgiu a partir de uma proposta de Vlamir Cruz, meu grande amigo. Ele tinha retornado para Natal, depois de passar um tempo trabalhando na Petrobras, no Rio. Vlamir juntou os amigos – eu, Ricardo Menezes e Piragibe – e formou a banda.
ZONA SUL – Qual era a proposta inicial da banda?
PEDRO – Fazer música sem se preocupar se iria fazer sucesso ou não. Queríamos mostrar a cara através da participação em shows, festivais e eventos. Não era para gravar disco.
ZONA SUL – Desde o início vocês já definiram que, além do som, a banda teria um lado performático?
PEDRO – Esse lado das performances surgiu comigo, no Festival do Forte, em 1984. Para não
ficar aquela coisa de só blem-blem-blem-blem, eu desci do palco e fiz uma performance poética. Montamos uma performance com várias poesias minhas, para eu falar durante uma música instrumental. Eles tocavam e eu interagia com o público.
ZONA SUL – Qual a reação da plateia?
PEDRO – Delírio total! Enquanto eu andava de um lado para o outro, no palco, ou então circulava pela plateia, ia falando aqueles poemas que tinha escolhido para o festival.
ZONA SUL – Quem também gosta muito de misturar texto com música, nos shows, é Jorge Mautner.
PEDRO – É. Mautner é outro guru. Foi nesse Festival do Forte que a performance foi incorporada à banda Cabeças Errantes.
ZONA SUL – O repertório de vocês era autoral?
PEDRO – Total. No começo, quase todas as músicas eram de André Júnior. Depois, Vlamir passou a compor com ele também. Após o sucesso que foi a apresentação no Festival do Forte, agendamos um show para o Teatro Jesiel Figueiredo. Foi outro sucesso fantástico. Lá lançamos um livro chamado “Artimanha”. Grande parte dos poemas eram as letras das músicas que a banda tocava. A intenção era que a plateia cantasse junto. A aceitação foi maravilhosa. Muitos artistas foram assistir, como Manoca, Carito e Erick. No palco, fiz algumas poesias performáticas. Depois desse show vieram muitos outros. Alguns antológicos.
ZONA SUL – Quais as principais apresentações dos Cabeças Errantes? Lembro de uma no I Festival de Música da ETFRN.
PEDRO – Ali foi fantástico, genial. Durante uma música, eu pintei um quadro. Pintei e depois destruí a pintura. O nome da poesia era “Amor Selvagem”. Eu não destruí o quadro brutalmente, mas pintei por cima do que eu tinha criado. Em outro show, cheguei montado em uma bicicleta. Foi no Festival da Poesia realizado em Candelária. Tiramos o primeiro lugar com meu poema “Pós-Lennon”. O texto é grande, mas o início é assim: “Pós ler / Pós lendo / Pós pós / Pós-Lennon”.
ZONA SUL – Vocês usavam algum tipo de aditivo químico - drogas ou bebida - para encarar a plateia e protagonizar essas performances?
PEDRO – Usava melhoral infantil. (risos). Era só água mesmo. Nem Vlamir, nem eu e nem Ricardo usávamos drogas. A gente já era doido de nascença mesmo. Nem maconha a gente tinha experimentado. Nessa época, por volta de 1986, era só o amor pela arte. Lembro de um show em um festival realizado na Cidade da Criança. O maior sucesso foi a apresentação do Cabeças Errantes. Conseguimos, com a Marinha, quatro sinalizadores de navio. Acendemos no palco. No vídeo “Amor Selvagem”, postado no Youtube, tem algumas cenas desse show e de outras performances.
ZONA SUL – Como surgiu o artista plástico Pedro Pereira?
PEDRO – Em 1988 fui demitido da Construtora Serra Negra, devido a uma redução de pessoal.
Peguei o dinheiro da rescisão, tudo o que tinha direito, e viajei para Brasília. Passei primeiro por Salvador. Peguei um ônibus para Salvador. Passei 15 dias por lá e depois fui para Brasília. Amei Brasília. Gastei quase tudo.
ZONA SUL – Também gostou de Salvador?
PEDRO – Achei muito parecida com Natal. A diferença foram as mulatas. Minha intenção era conhecer museus, artistas, gente, ir a shows, andar por novos lugares. Enfim, eu queria sair da toca, de Natal, e crescer culturalmente. Em Salvador, por exemplo, fiquei amigo do músico Jorge Papapá. Conheci também Raimundo Sodré. Ele vivia biritando lá na Barra.
ZONA SUL – Você ainda tem contato com esse pessoal?
PEDRO – Com Jorge, falo vez por, via Internet. Em Brasília conheci todos aqueles monumentos históricos e estive em bares como o Beirute. Também fui nas boates do Gilberto Salomão. Lembro da Água Mineral e do Shopping Venâncio 2000. Em Brasília comprei muitos discos, livros e um violão.
ZONA SUL – No retorno a Natal você produziu – ou na área da literatura ou das artes plásticas - alguma coisa com relação a essa viagem?
PEDRO – Quando voltei para Natal vendi os discos, vendi o violão e só guardei os livros. O violão vendi a Abimael Silva, do Sebo Vermelho. Ele comprou para revender.
ZONA SUL – Enveredamos pelo assunto da viagem, mas você ia falar sobre o seu começo nas artes plásticas.
PEDRO – Juntei o dinheiro que sobrou da viagem com o da venda do violão e dos discos e comprei tinta, camisetas, pincéis e papéis.
ZONA SUL – Como surgiu a ideia de transformar camisetas em tela?
PEDRO – Foi porque eu não conseguia vender as minhas telas, era pior que Van Gogh. Nem o meu irmão comprava. Até porque ele era liso. (risos). Descobri por conta própria que a camiseta poderia se transformar em um veículo para produzir arte original - sem perder meu brilho e minha característica - e vender mais rápido. Fui lá para a Rua João Pessoa, na época em que existia a Casa Lux. Na porta da loja, botei um cordão e estendi as camisetas. Com o dono da Casa Lux eu não tinha problema, quem implicava eram os guardas do município. Às vezes sim, às vezes não. Foi uma grande novidade para Natal. As pessoas gostaram muito, recebi elogios e vendi bastante. Foi um “boom”. A camiseta é um veículo ótimo para criar novas ideias. Minha intenção, a princípio, era usar a camiseta para me aperfeiçoar nas artes plásticas. Ao invés de treinar com papel, eu treinei com camiseta. Fiquei lá, naquele ponto, até 1990, quando mudei de rota. Em 1991 resolvi sair da rua. Fui para a galeria. Fiz uma exposição grandiosa com cem camisetas. Expus em um só dia, na AABB. Os jornais – Diário de Natal e Tribuna do Norte – noticiaram. As emissoras de TV também foram lá. No outro dia saiu o noticiário completo. Vendi todas em um dia só. Daí em diante não mais fui à rua. Levei minha exposição de arte camiseta também para Mossoró. Depois fui para Recife e Fortaleza.
ZONA SUL – Fora do Rio Grande do Norte as pessoas também receberam bem o seu trabalho?
PEDRO – Foi tudo maravilhoso. O Diário do Nordeste, em Fortaleza, me entrevistou. Lá a exposição foi em um teatro. Vendi um pouco menos, mas mesmo assim foi legal. Em Recife foi melhor ainda.
ZONA SUL – Qual a temática que você usava, na época, nesse seu trabalho de arte-camiseta?
PEDRO – Não tinha temática. Gosto de pintar jardins, temas abstratos... Sou muito eclético.
ZONA SUL – Depois do emprego de apontador você passou a se dedicar integralmente à arte ou teve outra profissão?
PEDRO – Passei a me dedicar à arte de corpo e alma, total. Desde lá sobrevivo apenas da arte. Tudo veio de supetão: resolvi não ser mais empregado de ninguém. Decidi que trabalharia para mim. Como eu tinha aptidão para a arte, foi por esse caminho que optei. Foi assim que me descobri artista: eu posso, eu quero e eu sou.
ZONA SUL – As apresentações da banda Cabeças Errantes rendiam alguma grana para vocês?
PEDRO – Eu pagava por aquilo, eu gastava dinheiro no material das performances. Nenhum de nós lucrou com a música. Era totalmente por prazer. Recebíamos cachês simbólicos.
ZONA SUL – Não dava nem para pagar a cerveja e o melhoral infantil...
PEDRO – (risos). No máximo dava para isso, no máximo! Da mesma forma, a poesia só rendeu inteligência à minha mente e serviu como um poderoso anti-stress. A poesia também funcionou para o meu deleite. Desenvolvi essas atividades devido ao meu amor pela arte.
ZONA SUL – Por que os Cabeças Errantes acabaram?
PEDRO – Não é nem que acabou. O tempo lapida as pessoas. As coisas mudam. Um casou, outro foi trabalhar com outras coisas... Um foi ter filhos, outro mudou de cidade... Isso fez com que nos distanciássemos. Esse é o rumo natural da vida.
ZONA SUL – Você sente falta daquela época?
PEDRO – Foi uma época muito boa, mas não sinto falta. Outras ocupações e interesses já preencheram essa lacuna.
ZONA SUL – A arte-camiseta cumpriu seu objetivo de servir de laboratório para você passar a trabalhar com telas?
PEDRO – A arte-camiseta ainda é o meu laboratório, até hoje. Sempre foi. Com o passar do tempo, descobri que a arte em tela ou em camiseta tem o mesmo valor. Hoje pinto em camiseta e em tela. Minha sobrevivência vem dessas duas vertentes das artes plásticas. Talvez a minha missão seja desmistificar a arte convencional.
ZONA SUL – Alguém já lhe copia na arte-camiseta?
PEDRO – Hoje tem algumas pessoas trabalhando com arte-camiseta. Quando comecei a pintar dessa forma, não tinha conhecimento de nenhuma experiência parecida. Depois de algum tempo, já trabalhando com arte-camiseta, descobri que Pink Wainer (artista plástica filha do jornalista Samuel Wainer e da ex-modelo e escritora Danuza Leão), pintava em tecidos. Ela tornou-se, então, uma fonte de onde eu pude beber.
ZONA SUL – Incomoda falar sobre o acidente vascular cerebral que você sofreu?
PEDRO – Podemos falar sobre isso, sim, numa boa. Já é passado. Aconteceu quando eu estava no velório da minha mãe. De repente, bateu uma tonturazinha. Eu amoleci, caí e já entrei em coma. Foi em 2002. Só recordo até o momento em que senti a tontura e caí. Daí em diante, não lembro de mais nada. Passei três meses em coma.
ZONA SUL – Você lembra do momento em que acordou?
PEDRO – Saí do coma aos pouquinhos. Recordo de Geraldo Carvalho indo lá tocar para mim.
ALDA – Geraldo pediu para ir cantar uma música para Pedro, quando ele ainda estava no coma. Até então, às vezes eu falava e Pedro abria o olho, mas não conseguia se expressar. No dia em que Geraldinho foi, Pedro começou a chorar. A gente via que ele estava emocionado, que estava consciente. Ele escutou. Pedro até lembra da música que Geraldinho cantou.
PEDRO - Foi Pétala, de Djavan.
ALDA - Geraldinho também tocou duas músicas dele mesmo. Na UTI do Walfredo, só podia entrar uma pessoa de cada vez. Geraldinho entrou com o violão e eu fiquei esperando lá fora. De repente, a médica veio me chamar. Nessa hora, quase morri. Pensei que tinha acontecido alguma coisa. Mas ela apenas pediu para eu entrar, dizendo que Pedro estava bastante emocionado. Na UTI, segurei a mão dele, enquanto Geraldinho cantava. Desde o começo, quando Pedro tinha entrado no coma, eu conversava muito com ele. Sempre falava o que estava acontecendo na cidade e contava como as pessoas estavam solidárias. Tudo que acontecia, eu falava.
ZONA SUL – Então ele nunca deixou de estar atualizado...
ALDA - Ele estava sempre atualizado, apesar de fora do ar. Na hora, eu me enchia de força para falar sem chorar. Procurava agir como se ele estivesse bem. Porém, quando eu saía da UTI, desmontava. Felizmente Pedro não ficou com aparência de uma pessoa que passou três meses na UTI. As pessoas que o visitavam sempre diziam que ele estava muito bem. Realmente, apesar desse tempo todo, ele não ficou com aparência ruim. Ficou magrinho e tudo, mas só isso. As pessoas comentavam que ele estava corado e eu achava que estavam querendo me enganar, porque todo dia que eu chegava, o quadro era o mesmo: Pedro não tinha reagido a nada.
ZONA SUL – Qual foi a primeira reação, a primeira mostra de que ele estava recobrando a consciência?
ALDA - Um dia, quando uma bandeja caiu, Pedro esboçou uma reação ao ouvir o barulho. Esqueci de dizer que, no início, ele também ficou sem ver. Não enxergava nada quando começou a abrir o olho. Pedro saiu da UTI ainda em coma. O médico dizia que ele ia ficar vegetativo, por isso teve que sair da UTI, para ceder o lugar para pacientes em pior situação que ele. Graças a Deus, depois disso ele foi reagindo e se recuperou. Pedro lembra de coisas que aconteceram quando ele ainda estava no hospital. Depois que saiu da UTI, consegui uma vaga no Hospital Onofre Lopes, que tinha uma enfermaria melhor do que a do Walfredo Gurgel. Pedro mistura fatos que ocorreram na enfermaria do Onofre Lopes com outros da UTI do Walfredo. Pedro voltou para casa com traqueostomia, sem se comunicar de forma alguma, a não ser com os olhos. Como ele estava muito frágil, a médica achou melhor ele ir para casa, para não correr o risco de pegar uma infecção.
ZONA SUL – A recuperação, após chegar em casa, demorou muito?
ALDA – Foi lenta. Ele chegou, em casa, em março. Passamos abril e, em maio, conseguimos uma vaga no Hospital Sarah Kubitschek. Primeiro ele foi para o Sarah em Fortaleza. Depois foi encaminhado para Brasília, porque estava com um problema no braço direito, o que ele tem movimento. Foi detectado um problema no nervo. Teve que fazer uma cirurgia. Voltamos de Fortaleza para Natal, até para eu conseguir uma licença do meu trabalho, e fomos para Brasília. Depois do Sarah foi que ele passou a reagir mais e começou a se alimentar normalmente. No período em que saiu do hospital, Pedro ficou ainda um mês com a traqueostomia, em casa. Depois que foi voltando a respirar, a médica tirou. Voltar a falar mesmo, foi lá pro final do ano. Ele falava uma linguagem que só ele entendia.
PEDRO – Era russo. (risos)
ALDA - A voz ficou esquisita e ele não conseguia articular as palavras. Até hoje está um pouco assim. Você está entendendo o que ele está falando?
ZONA SUL – Estamos entendendo, sim.
ALDA – Às vezes ele não respira para falar.
ZONA SUL – Vocês tem filhos?
ALDA – Não. Tivemos uma filha, mas ela não sobreviveu. Chegou a nascer, mas faleceu no dia em que nasceu. Mas isso foi bem antes.
ZONA SUL – Obrigado, Alda. Pedro, você é um expoente da arte potiguar. É uma figura que cabe em qualquer enciclopédia que for escrita sobre o Rio Grande do Norte. Não importa se o tema seja poesia, música, artes plásticas... Certamente você figuraria em qualquer coletânea de arte contemporânea feita no estado. Precisaríamos de muito mais tempo para entrevistar alguém do seu porte. Por isso, muita coisa deixou de lhe ser perguntada. Para suprir, pelo menos parcialmente, essa lacuna, pedimos a sua ajuda: o que de mais significativo faltou ser perguntado?
PEDRO – Acho que o básico foi colocado. Mas, talvez tenha faltado eu falar sobre o meu lado de artista autodidata. Muitos menosprezam o autodidata. Mas isso não tem nada a ver. Busquei meus conhecimentos por conta própria, mas sempre procurei absorver o lado mais amplo da criação pictórica. Procurei conhecer os mestres da arte plástica mundial e me colocar em um contexto. Hoje eu sei onde estou, o que eu faço, como eu faço e por que faço. O cara que mais me deixou claro isso foi Salvador Dali, que nunca foi adepto da academia. A academia, para ele, era uma grande merda. Dali foi meu grande mestre na parte teórica, na parte prática, Claude Monet foi meu grande guru.
ZONA SUL – Como você classificaria as artes plásticas do Rio Grande do Norte? O que vale a pena apreciar?
PEDRO – Nós temos pessoas célebres em vários estilos. Por exemplo: Thomé Filgueira – falecido há poucos anos - foi o maior expoente do expressionismo que tivemos. Dorian Gray é um grande astro da arte contemporânea. Newton Navarro foi um baluarte. Tem muitos - como Assis Marinho e outros - que se enquadram no mundo da arte plástica universal. Na verdade, não existe diferença se a pessoa é potiguar ou de outro planeta. O que vale é a arte conceitual, é o valor artístico cultural. Não é apenas melecar uma tela: o trabalho tem que ter contexto e conteúdo.
ZONA SUL – O que você recomendaria a um jovem que desenha bem e aparentemente tem talento para as artes plásticas?
PEDRO – Eu diria que não se limite ao desenho. O desenho limita a pessoa. Desenhar é importante, mas não se limite a ele. Desenho é só uma parcela da arte, um fragmento. O desenho cria uma redoma e você se fecha. Procure horizontes abertos, criação aberta. Vá também para o abstrato, experimente outras escolas da pintura. Só assim você vai achar a sua.
ZONA SUL – Como o leitor pode ter acesso ao seu trabalho? Como adquirir uma obra em tela ou em camiseta de Pedro Pereira?
PEDRO – Atualmente tenho utilizado o Facebook como minha galeria. Na minha página estão disponíveis fotografias de quadros e também de camisetas que estão à venda. Basta me procurar através do Facebook ou enviar um e-mail para que possamos manter contato: pedropereiranatal@gmail.com Quem quiser ter uma noção da minha arte, também pode me visitar através do Facebook.
ZONA SUL – Despeça-se do leitor do jornal.
PEDRO – A todos os amantes e amados pela arte sintam-se convidados a ter, em vida, a arte em suas casas. Deem vida a arte. Ter arte em vida é viver com a arte dentro de casa.
ZONA SUL – Salve, Pedro Pereira!!!

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Entrevista: Marcos Brandão

O HEDONISTA QUE NUNCA DEIXOU DE SER PROFISSIONAL

Lembro de Marcos Brandão desde a época do I Festival de Música da Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte, realizado, em Natal, no início dos anos 1980. A canção defendida por ele e um grupo de músicos de Ceará-Mirim estava entre as favoritas para ganhar o primeiro prêmio do evento. Devo tê-lo assistido dezenas de meses também no bar da ASFARN (Associação dos Servidores Públicos Fazendários do RN), na Ponta do Morcego. Mas, infelizmente, nunca tinha sido apresentado a ele. A oportunidade surgiu agora, graças ao meu irmão e patrocinador de boas causas, Ronaldo Siqueira. Com ele e os jornalistas Roberto Fontes, Márcia Pinheiro, Fabiana Bagdonas e Costa Júnior, entrevistei Marcos Brandão no Restaurante Veleiros. O vinho, como sempre, estava na temperatura ideal. A comida servida pela equipe do Veleiros, comandada por Ricardo Menezes, foi o aperitivo ideal para a saborosa conversa. Marcos Brandão contou toda a sua trajetória: um cara que não se acovarda quando é o momento de pegar no pesado, mas que também não abre mão de experimentar todos os prazeres possíveis. (robertohomem@gmail.com)


ZONA SUL - Diga o seu nome completo.
MARCOS – Marcos Antônio Cocentino Brandão.
ZONA SUL – Você é das bandas de Ceará-Mirim...
MARCOS – Nasci por lá, minha infância foi toda lá. Meus pais também são da região. Minha família, Cocentino, é de origem italiana, mas se estabeleceu em Ceará-Mirim, no início do século passado. Meus pais eram agricultores, tinham propriedades, cultivavam cana-de-açúcar. Eles também tinham hortaliças e mexeram com cerâmica. Por último, entraram no ramo de restaurante. Administraram restaurantes pequenos, mas bem frequentados.
ZONA SUL – De alguma forma seus pais se envolveram com a música?
MARCOS – Minha mãe, na juventude, foi cantora e tocou violão. Aliás, todas as minhas tias maternas tocam violão. Desde a infância até hoje, vivi em um ambiente de música.
ZONA SUL – Sua mãe tocava violão apenas em casa?
MARCOS – No início ela tocou em banda, lá em Ceará-Mirim: fez shows na cidade e tudo. Depois que casou, deixou de tocar. Na casa da minha avó sempre tinha um violão afinado. Como todo mundo da família tocava ou conhecia alguma coisa do instrumento, quem chegava já ia logo fazendo um som. Comumente a gente se reunia, à noite, para tocar. Dos filhos e netos, eu e mais dois ou três, somente, nos interessamos pela música.
ZONA SUL – Fale um pouco sobre a sua infância, as primeiras recordações...
MARCOS – Inicialmente a minha infância transcorreu em uma pequena propriedade do meu avô no distrito chamado Várzea de Dentro. Depois de nascer em Ceará-Mirim, fui morar nesse distrito, onde sequer tinha energia elétrica! A família ia dormir às sete da noite, nunca esqueci esse detalhe. O jantar era servido às cinco. Depois, ficávamos um tempinho na frente da casa. Às seis e meia todos íamos para a cama. Em compensação, antes das cinco da manhã meu avô chegava da cidade e me levava para o curral, para a ordenha. Lá eu tomava meu copo de leite com Toddy. Depois disso ia tomar banho no rio para, em seguida, ir até Ceará-Mirim estudar. No final da aula voltava para a fazenda, a cavalo, acompanhado de um vaqueiro. Essa era a melhor parte: cavalgar até em casa. Percorríamos nove quilômetros em cerca de 40 minutos. Quando completei dez anos fui morar na cidade, em Ceará-Mirim. Foi uma mudança brusca: o ritmo de vida passou a ser outro, as brincadeiras eram diferentes... Na fazenda era muito mais agradável, embora a cidade foi onde comecei a ter mais curiosidade pela vida.
ZONA SUL – Na fazenda você convivia com outras pessoas da sua faixa etária?
MARCOS – Os trabalhadores da fazenda tinham filhos. Eu brincava e convivia com eles. Nosso dia era cheio de atividades, a principal diversão era passar horas tomando banho de rio. O Rio Ceará-Mirim passava no meio da propriedade. Ele ficava a cerca de dois quilômetros da casa onde eu morava. Qualquer tempo livre, corríamos para o rio. Fora isso, a gente também andava a cavalo, observava a ordenha, a separação de gado... A criação era de gado para corte e também de gado para leite. Eu adorava preparar a ração para o gado, auxiliando os trabalhadores. Porém eu preferia mesmo era andar a cavalo e tomar banho no rio.
ZONA SUL – E na cidade?
MARCOS – Quando viemos morar na zona urbana, Ceará-Mirim ainda era uma cidade muito provinciana. Ainda era a época da ditadura. Só existiam dois partidos políticos. O que mais animava a cidade era a festa da padroeira, Nossa Senhora da Conceição, que ocorria em dezembro. O São João e a época da campanha política também agitavam a população. Ceará-Mirim tem - e já tinha naquela época - uma biblioteca muito boa, chamada Dr. José Pacheco Dantas. Desde que fui morar na cidade, me tornei assíduo frequentador de lá, apesar de ter apenas 10 ou 11 anos de idade. Na verdade, sempre gostei muito de ler.
ZONA SUL – O gosto pela leitura foi incentivado pelos seus pais?
MARCOS – Quem mais me incentivou foi uma tia, a tia Darilene, que, infelizmente, já faleceu. Ela era professora. Aliás, duas tias maternas foram professoras: tia Dilma e tia Darilene. Tia Darilene tinha uma ânsia de ensinar muito grande. Então ela incentivou bastante esse meu gosto pela leitura.
ZONA SUL – O que você lia nessa época?
MARCOS – Eu gostava de ler Neimar de Barros, alguns livros clássicos e Machado de Assis. Li também muitas obras filosóficas. Por incrível que pareça, meu gosto era voltado para esse lado. Meus irmãos e irmãs não se interessaram por essa área, a filosofia, que foi uma leitura que muito me agradou naquela época. Eu também gostava de ler o trivial, como os livros de romance e os de aventura. Na verdade, eu gostava mesmo era de ler. Lia até bula de remédio, rótulo de desinfetante e tudo o mais que fosse possível.
ZONA SUL – Também ouvia muita música? O que costumava ouvir?
MARCOS – Sim, ouvia muita música. Na época lembro que escutei muito Roberto Carlos, aprendi a cantar dezenas de canções dele. Sempre gostei da boa música brasileira: Noel Rosa, Sílvio Caldas, Sinhô... Também ouvia a jovem guarda: eu gostava de Celly Campelo. Outros que me agradavam eram Erasmo Carlos e Raul Seixas, entre tantos outros.
ZONA SUL – Pelo visto, você gostava de músicas mais antigas do que as de sua geração...
MARCOS – Realmente o meu gosto é mais antigo. Talvez por ter sido o primeiro neto, eu andava muito com o meu avô, Danilo Brandão. Eu ia com ele, de jipe, comprar farelo em João Câmara. O jipe não tinha som, então ele cantava a viagem inteira. O detalhe é que ele andava a 30 quilômetros por hora. De Ceará-Mirim para João Câmara são 48 km. Nós gastávamos quase uma hora e meia para chegar lá. Nesse percurso, ele ia cantando. Então, eu ouvia muita coisa. Também contribuiu para esse meu gosto o fato de na casa da minha avó paterna haver muitos discos antigos de intérpretes como Nélson Gonçalves, Carlos Gardel, Milton Carlos e Paulo Sérgio. Até morei uma época com os meus avôs.
ZONA SUL – No colégio você participou de manifestações culturais? Havia algum movimento musical?
MARCOS – Desde o jardim de infância, de cara, quando entrava em uma escola eu já procurava a bandinha. Eu ensaiava para tocar corneta no desfile de 7 de Setembro. No Grupo Escolar Barão de Ceará-Mirim eu fiz parte de uma bandinha de fanfarra que tinha.
ZONA SUL – Qual o instrumento?
MARCOS – Sempre corneta, sempre instrumento de sopro. Também estudei pistom na banda de música, porém, sofri um acidente de carro e fiquei com uma sequela no lábio. O resultado é que perdi a embocadura. Foi por isso que deixei de tocar pistom. Mas sempre a minha atenção foi voltada para a música. Quando chegava em qualquer escola procurava me informar se havia banda. Se a resposta fosse positiva, eu procurava logo fazer parte.
ZONA SUL – Quer dizer que o violão foi uma alternativa quando você perdeu a condição de tocar instrumentos de sopro.
MARCOS – Foi. É bom ressaltar que antes do violão eu já cantava. Antes de tocar eu tive bons parceiros para me acompanhar. Só que às vezes acontecia algum imprevisto de aquele músico faltar e eu ser obrigado a ter que conseguir outra pessoa, de última hora, sem sequer ter ensaiado. Isso contribuiu para eu desenvolver o interesse pelo violão. No começo eu tocava com o violão emprestado por um vizinho. Aprendi olhando aquelas revistinhas de acordes. Foi assim até o dia em que, ao chegar em casa, meu pai tinha comprado um violão usado. A partir daí me interessei realmente pelo instrumento. Na sequencia montei um repertório com o qual eu tinha condições de me apresentar em qualquer lugar, para os amigos. Posteriormente virei músico profissional.
ZONA SUL – O que incluía esse seu primeiro repertório?
MARCOS – Até hoje gosto muito mais das coisas antigas do que das novas. Na época eu já curtia Chico Buarque, Caetano Veloso, Alceu Valença... Isso era a década de 1980. Foi quando desenvolvi um repertório para tocar de forma profissional. O auge daquele tempo eram as canções estilo Cazuza e as daquelas bandas de rock, como Titãs e Paralamas do Sucesso. Porém eu estava voltado para Chico Buarque, Caetano, Tom Jobim, Vinicius de Moraes... Posso voltar um pouco no tempo para contar uma coisa que eu esqueci de dizer antes?
ZONA SUL – Claro, a entrevista é sua.
MARCOS – Nas férias escolares da minha infância – que iam de dezembro até o início de março – a tia sobre quem falei, Darilene, me pegava em Ceará-Mirim e me levava para a casa dela, em Natal, na Rua Jundiaí. Lá tinha muitos discos, como, por exemplo, de Luiz Gonzaga, Chico Buarque. Tudo o que saía, ela comprava. Então eu passava esses três meses de férias ouvindo música da melhor qualidade. O esposo dela, Edgar, que também me influenciou muito, da mesma forma tinha um gosto musical fantástico. Sua paixão pela leitura era maior ainda. Na casa desses tios foi onde realmente conheci muita coisa boa da música. Na época eu tinha uns 13 anos.
ZONA SUL – Você começou a compor antes de passar a tocar nos bares?
MARCOS – Não.
ZONA SUL – Então, antes de entrar na fase das composições, explique como se deu a transição de tocar para os amigos para se apresentar em bares.
MARCOS – Meu pai tinha uma indústria de cerâmica em sociedade com o meu avô e com esse tio por afinidade, Edgar. A cerâmica enfrentou dificuldades financeiras, em 1982, e acabou fechando. A cerâmica foi vendida e houve um rolo. Meu pai acabou perdendo tudo. Então ele resolveu abrir um bar. Foi nesse bar que fiz minhas primeiras apresentações. Eu tocava junto com Jean Carlos – que hoje é do Grogs e é um grande cantor. Na época ele cantava somente músicas dos Beatles. A irmã dele, Giane, que hoje é professora, também cantava. Seu repertório eram músicas de Simone, Gal Costa e Maria Bethânia. Eu cantava Chico, Caetano, João Bosco... Um dos gêneros fortes do bar era a seresta. Lá tocava muito Noel Rosa, Bororó, Lupicínio... A música ao vivo durava umas oito horas: de meio-dia às 8 da noite. Era um bar e restaurante.
ZONA SUL – Quem frequentava?
MARCOS – Naquela época ainda não tinha a rodovia nova, que vai para o litoral norte. Então, quem ia para as praias do litoral norte tinha que passar por Extremoz (se fosse para as praias mais próximas), ou por Ceará-Mirim. Muitos dos que pretendiam ir para as praias mais longe, ao passar no bar, paravam lá mesmo ficavam, nem seguiam viagem. Preferiam ficar ouvindo a música, que, como eu já disse, ia até 8 da noite. Nós, os músicos, íamos nos revezando. A partir daí surgiu a oportunidade para eu vir cantar em Natal, pela primeira vez, no Restaurante ASFARN, lá na Ponta do Morcego. Toquei lá um bom tempo. A partir daí fui me profissionalizando cada vez mais. Na verdade, esse termo profissional eu utilizo com pouca propriedade, já que nunca fui um bom profissional. Sempre fui aquela pessoa que agradava bastante cantando, mas nunca fui aquele músico profissional ao pé da letra. Por exemplo: meu repertório nunca foi fechado. Eu chegava chegava e cantava uma aqui, outra acolá, até descobrir o fio da meada. Era nesse filão que eu investia. Eu também bebia e fumava no palco. Quer dizer, nunca fui um músico exemplar. Em minha defesa tem a explicação de que, naquela época, anos 1980, a boemia era muito ligada à produção musical. Era diferente de hoje, que ainda aceita os boêmios no palco, mas exige uma certa discrição.
ZONA SUL – Quando você veio tocar em Natal já tinha concluído os estudos?
MARCOS – Tinha terminado o segundo grau, mas ainda não havia começado o ensino superior.
O negócio é que casei muito cedo. De fato eu casei duas vezes. A terceira foi praticamente um casamento. Casar precocemente fez com que eu parasse os estudos e começasse a tentar ganhar dinheiro. Eu sempre trabalhei.
ZONA SUL – Qual seu primeiro emprego?
MARCOS – Meu primeiro emprego fora de um negócio da família foi em uma empresa subsidiária da Petrobras. Lá eu fui almoxarife. Trabalhava durante o dia e tocava à noite, de domingo a domingo. Foi uma época muito boa da minha vida, apesar de bastante cansativa.
ZONA SUL- Quando você resolveu retomar os estudos?
MARCOS – Vivi, na noite, 22 anos tocando como profissional. Em uma casa só, passei 14 anos. Isso foi em um bar lá na Praia dos Artistas que começou como “Trampolim” e depois passou a ser “Trem de Minas”. Comecei lá em 1991 e saí em 2005, quando parei de tocar em barzinhos. Eu tocava e cantava. Às vezes era acompanhado por uma percussão ou outro músico.
ZONA SUL – Destaque alguns artistas que se apresentaram com você nesses anos todos.
MARCOS – Alexandre Lacerda, que é um grande compositor de Ceará-Mirim, foi um deles. Toquei também com João Maria Varela, um violonista também de Ceará-Mirim. Aqui em Natal me apresentei com Marcelo Randemarck, com Edmar (da Banda Anos 60), com Romildo Soaress, com o baterista Carlinhos... Também fiz shows em bares e participei de festivais com Galvão Filho. Enfim, toquei com praticamente toda a turma da década de 1980 até o final dos anos 1990.
ZONA SUL – Como surgiram as primeiras composições?
MARCOS – Meu parceiro Alexandre Lacerda foi a pessoa que mais me influenciou. Ele
compunha compulsivamente, não parava de compor: sempre estava com uma ideia na cabeça. Alexandre me mostrava, eu dava uma opinião. Algumas de nossas parcerias eu fiz a melodia e ele colocou a letra. Em outras participei, com ele, na letra da música. Compus também com Zeca Brasil. Inclusive, Zeca gravou “Jura”. Compus com Ivando Monte, com Michelle Lima... Ivando Monte é, pra mim, atualmente, um dos melhores compositores de Natal. O meu lado musical foi mais para a interpretação do que para a composição. Todas as minhas músicas são em parceria. Tenho alguns poemas que aos poucos estou levando ao conhecimento de colegas para musicar. Tenho uma dificuldade terrível em musicar. Prefiro fazer a música e depois colocar a letra do que o contrário. Tenho muito mais facilidade em compor a letra do que a música.
ZONA SUL – Suas composições têm algum tema específico?
MARCOS – Não. Por exemplo: em parceria com Alexandre Lacerda fiz uma música baseada naquele livro “As veias abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano. Com Zeca Brasil fiz uma canção retratando uma paixão que estava sentindo por determinada pessoa, naquele instante. Com Michelle Lima e Ivando Monte também fiz músicas sentimentais. Quer dizer, não existe um tema específico.
ZONA SUL – Você senta e escreve uma música ou espera a inspiração chegar para poder compor?
MARCOS – Normalmente a música vem pra mim como um sentimento. Ela nunca me vem como uma história. Geralmente ela vem mais pelo que estou sentindo, pelo que estou passando.
As coisas me ocorrem quando estou caminhando pela manhã, quando começo a pensar... Eu deveria gravar essas ideias. Hoje em dia todo celular grava, mas nunca fiz isso. Depois é que tento relembrar e vou escrevendo aos poucos. Hoje escrevo um pouquinho, amanhã lembro e retomo o que escrevi, ou modifico tudo. Comigo acontece assim, mas pode até ser que saia alguma coisa se decidir fazer uma música a qualquer momento. Mas normalmente não funciona assim.
ZONA SUL – Vamos falar de sua fase participando de festivais.
MARCOS – O primeiro festival do qual participei foi um da UFRN, no começo dos anos 1980. A música não era minha, era de Alexandre Lacerda. Conseguimos classificar duas músicas para esse festival. Uma chamava-se “Terceiro mundo”, uma crítica ao sistema político-econômico brasileiro. A outra era “Sarjai o Apartheid”. Estava na época de Mandela e do Apartheid na África do Sul. Nesse festival ficamos em terceiro lugar com “Sarjai o apartheid”. Aconteceram alguns fatos curiosos. O primeiro foi que estava combinado para, no início da música “Sarjai o apartheid”, por se tratar de um tema afro, eu dizer: “um axé para todos”. Na hora embolei a língua e pronunciei “um axê”. Um elemento lá da plateia olhou e disse: “o nome não é axê, não, animal: o nome é axé”. Pouco tempo depois, quando subi ao palco para defender uma música no festival da ETFRN, o camarada estava lá e me reconheceu: “diga aí, Axê”. Era um gordão, bonachão, daqueles caras divertidos. Quase morro de vergonha. Outro fato curioso é que a música ficou empatada com o segundo lugar. No dia do festival, trouxemos, de Ceará-Mirim, uma torcida maravilhosa para nos aplaudir. No meio veio o meu irmão mais novo, Renato. Ele tinha ido mais pela farra do que pelo festival. Quando saiu o resultado de empate, pediram que uma pessoa da plateia que escolhesse o vencedor, que desempatasse. Pediram ao meu irmão e ele votou na música do concorrente. Por isso ficamos em terceiro. (risos)
ZONA SUL – Esse foi o da UFRN. E depois?
MARCOS – Depois participamos do Festival do SESI. Houve um fato curioso com a música “Veias abertas da América do Sul”, baseada no livro do Eduardo Galeano. A música ficou em quarto lugar. O curioso é que o apresentador, famoso em Natal, na hora de nos apresentar, disse: “agora vamos convidar Marcos Brandão para interpretar a música “Véias (de velhas) abertas da América do Sul'”. Todo mundo caiu na gargalhada. Quando cheguei no palco tive que corrigir aquela gafe. Depois teve o festival da ETFRN, que foi muito bom, apesar do problema que foi a acústica do ginásio. Ficamos em terceiro lugar. Ao todo, participamos de três festivais do SESI. Ganhamos o prêmio de melhor intérprete com Sueldo, que fazia parte do nosso grupo. Em um desses festivais também ficamos em primeiro lugar com a música “Natureza”, de Alexandre Lacerda.
ZONA SUL – Fora de Natal você se apresentou?
MARCOS – Em festivais, não. Mas toquei em São Luís, do Maranhão. A empresa que sempre trabalhei, Transpel - Transportes de Petróleo, tem negócios em São Luís. Fui lá substituir um gerente nosso que estava com problema de saúde e acabei ficando alguns meses. Naturalmente levei o violão e lá surgiram vários contatos. Trabalhei bastante em São Luís. Também fiz shows em Recife.
ZONA SUL – Em São Luís você conheceu alguns músicos que aconselharia o leitor a procurar se inteirar do trabalho dele?
MARCOS – Fiz vários shows, lá, sozinho. Mas conheci muita gente boa. Para não correr o rico de esquecer alguns deles, vou citar o nome de apenas um que me agradou bastante: Beto Pereira. Ele já está mais ou menos no cenário nacional. É um dos que eu recomendo.
ZONA SUL – No Maranhão, se apresentando em São Luís, você chegou a incluir no seu repertório canções de artistas potiguares?
MARCOS – Sim, principalmente de Alexandre Lacerda. Trabalhamos juntos uns dez anos. Apresentei muitas canções dele, tenho boas músicas dele no meu repertório que apresento em qualquer lugar. Sempre procuro mostrar as músicas de Alexandre, que são muito boas. Também cantei Ivando Monte e algumas canções antigas, como “Praieira”. Gosto muito de Chico Eliont e Elino Julião, por exemplo. Certa vez jantei na casa de Elino, foi maravilhoso.
ZONA SUL – Como foi? Como era Elino Julião na intimidade?
MARCOS – Foi maravilhoso. O cardápio incluiu batata-doce, linguiça do sertão... Elino era uma pessoa tão simples que pedia desculpas para falar. Ele dizia: “desculpa aí, deixa eu falar aqui uma coisa...”. Participei de um jantar organizado por dois amigos. Estivemos lá eu, Lene Macedo, Jô Fernandes, Marcelo, Carlos... Levamos o som. Era aniversário de Elino. O jantar era comida do sertão. Aquela coisa de você comer e passar a semana cheio. Foi divertido demais. Ele, na janela, pegou um gravadorzinho de fita cassete e ficou lá gravando a gente cantar. A simplicidade nasceu dele. Elino Julião era um compositor fantástico.
ZONA SUL – Infelizmente, como tantos outros, Elino Julião morreu quase que esquecido. Por que, no geral, o artista potiguar não tem o reconhecimento que merece?
MARCOS – Há uma lacuna enorme, mas eu responderia com uma pergunta: qual a característica do povo potiguar? Qual a característica que marca? O que o faz reconhecer um potiguar fora de Natal? Se você chegar no Rio de Janeiro, facilmente identificará um cearense, um pernambucano, um baiano, um paraibano... E o potiguar? Já busquei essa característica e não encontrei. Não há essa característica exclusiva que faça o potiguar ser reconhecido onde vá, como ocorre com os nascidos nos outros estados que citei. Outra coisa: qual o prato típico potiguar? Qual a comida originária do Rio Grande do Norte?
ZONA SUL – A carne de sol do Seridó é espetacular.
MARCOS – É, mas quando se chega no centro sul do país, só se fala na carne de sol da Paraíba. O povo potiguar, talvez por ser extremamente hospitaleiro, valoriza mais os que vêm de fora do que os da sua própria terra. Talvez até pela influência americana no país, na época da segunda guerra mundial. Então, não há valorização do conterrâneo. Houve uma época em que eu tinha uma bandinha, que não tinha nome, mas que tocava todo tipo de festa. O repertório ia desde o Trio Irakitan até Chico Buarque, incluindo a música dos anos 60.
ZONA SUL – Quem fazia parte dessa banda?
MARCOS – Eu tocava violão de seis cordas, Alexandre Lacerda uma viola de 12 cordas, a
percussão ficava por conta de Arimatéia e Zé Maria. Era uma banda bem eclética. Qualquer tipo de festa que você quisesse fazer, a gente tocava. Uma vez, lá em Ceará-Mirim, contrataram uma banda para fazer uma festa. Ceará-Mirim, mesmo tendo grandes músicos, trazia gente de Natal pra tocar. Já Natal trazia de outros estados. Mas eu dizia que esse grupo contratado cobrou o triplo do que nós cobraríamos e, sem falsa modéstia, talvez tivéssemos a mesma qualidade deles. Mas o grupo faltou no dia da festa. O clube municipal, lotado, e nada do conjunto para tocar. Como eu morava vizinho ao clube, o organizador do evento foi me procurar. Eu disse que topava tocar, mas cobrei seis vezes mais do que o cachê acertado com o grupo de Natal. Ele quis reclamar, mas eu falei: “se você tivesse nos procurado antes, teria um grupo lá agora, nesse momento”. Coisa parecida acontece com o Carnatal, que poderia ser muito bem feito só com músicos da terra. Temos artistas excelentes que fariam com a mesma animação. O problema é que não se valoriza. Basta ver os shows do Projeto Seis e Meia. As pessoas entram no teatro no meio do show da atração local. Quando entra o artista nacional, o teatro está lotado.
ZONA SUL – O pior de tudo é que o artista de fora recebe antes e o daqui pena para receber seu cachê. Outro dia li Isaque Galvão cobrando, no Facebook, o cachê do São João do ano passado.
MARCOS – Conheço vários casos desse. Outro problema é a diferença enorme de cachê. O artista local, além de receber bem menos, às vezes nem recebe.
ZONA SUL – Você nunca pensou em gravar um CD para registrar o seu trabalho?
MARCOS – Sou uma pessoa niilista. Esse é um termo muito abrangente que resume-se no seguinte: é aquela pessoa pra quem nada tem valor. Nada é importante, a não ser aquilo que estou vivendo naquele momento. Então, não gravei Cds sozinho. Gravei em bar e participando de discos de outros artistas. Gravei, por exemplo, com Ivando Monte. Porém, passei todas as cópias que ele me deu para pessoas queridas de quem gosto. Gravei com Lene Macedo, mas também não tenho o disco. Gravei um CD do “Estação de Minas”. Nesse gravei três músicas, mas, da mesma forma, não tenho uma cópia. Se você me pedir que eu mostre algum desses trabalhos, não tenho como. Agora, quando chego na casa dos meus amigos, todos têm. Também praticamente não tenho fotografias minhas em casa.
ZONA SUL – Youtube, Facebook, Myspace... Você utiliza algum desses recursos?
MARCOS – Tenho Youtube e Facebook, mas alimento muito raramente, até por falta de estímulo. De fato, esses são instrumentos viciantes. Se você se envolver, acaba demandando muito tempo. E eu exerço várias atividades simultaneamente. Essas coisas fazem com que o meu tempo se torne bem curto. Prezo muito pela qualidade de vida. Sempre destinei, prioritariamente, um tempo para o lazer, para o prazer. Trabalho desde os onze anos de idade. Apesar de o trabalho me fascinar, entre a qualidade de vida e desenvolver uma obra fantástica, inesquecível ou memorável, prefiro a primeira opção.
ZONA SUL – Como encontrar você nessas redes sociais?
MARCOS – Basta procurar Marcos Brandão. Vai achar alguma coisa no Youtube, Orkut, Facebook... Se digitar Marcos Brandão, surgirão alguns. Eu estarei lá, no meio.
ZONA SUL – Hoje em dia qual a sua relação com a música?
MARCOS – Sou um eterno apaixonado pela música. Tenho dois violões e não me separo deles. Toco violão praticamente todo dia, nem que seja por 30 segundos. Meu violão fica desencapado. Mesmo que eu chegue tarde da noite, toco nem que seja 30 segundos. Não ando sem o violão na mala do carro. Digo muito que a música deveria ser uma disciplina obrigatória: desde o ensino fundamental até o superior. Em qualquer curso que se fizesse, devia ter uma cadeira chamada música. Em todas as escolas, na minha infância, tinha música. Pelo menos em educação artística se pagava um crédito de música. Comecei estudando pistom, como falei. A música é matemática pura e simples. Todos os compassos e notas têm uma divisão. A música ajuda no desenvolvimento do intelecto. Muito do que aprendi na vida foi por causa da música. Se a música fosse obrigatória, teríamos uma sociedade mais culta e certamente menos violenta.
ZONA SUL – Como foi a sua vida acadêmica?
MARCOS – Como falei, comecei a trabalhar aos onze anos. Meu pai tinha uma indústria de cerâmica em Ceará-Mirim. Eu queria ter salário, mas não de graça. Queria fazer alguma coisa. Por isso, fui trabalhar. Ganhava 30 cruzeiros por semana, enquanto a maioria dos jovens da minha idade recebia um cruzeiro para ir ao cinema. Depois, aos 18, comecei a trabalhar na empresa subsidiária da Petrobras a qual me referi. Casei muito novo e tive uma filha. No segundo casamento tive outra filha. Como eu tocava e queria ver minha filha crescer, optei por não estudar. Dessa forma também pude curtir a vida que eu tinha na época. Somente depois foi que voltei a estudar e fiz o curso de Direito. Me graduei e me tornei advogado. Hoje trabalho nessa empresa e advogo. Todos os dias chego em casa às onze da noite. Antes vou ao escritório fazer também o meu trabalho de advocacia. Só que na sexta, sábado e domingo não existe mais nada pra mim a não ser a vida, a não ser a noite. Já era assim quando eu estudava.
ZONA SUL – Fala-se muito em acabar o exame da OAB por supostamente ele ser uma prova muito difícil de passar. O que você acha disso?
MARCOS – Realmente há uma polêmica grande com relação à OAB. No meu caso, nunca perdi um final de semana por causa desse exame. Passei na OAB antes de terminar o curso de Direito, no décimo período. É só uma questão de determinação ou de necessidade para passar. No eu caso foi de necessidade. Muitas pessoas fazem Direito apenas para adquirir conhecimento. Algumas dessas pessoas até já estão bem empregadas. Na minha turma a maioria tinha mais de uma graduação. Nem todos se interessavam muito. Minha primeira paixão é a música, mas a segunda é a advocacia. Minha vida profissional hoje resume-se ao trabalho na empresa que gerencio e à advocacia. Posso dizer que sou um advogado praticamente em início de carreira. Não sou um velho advogado, sou um advogado velho.
ZONA SUL – Se tivéssemos que fazer mais uma pergunta a você, qual seria ela?
MARCOS – Vocês perguntariam como eu sou.
ZONA SUL – Tudo bem. Então, como você é?
MARCOS – Gosto de me descrever assim: sou um cara extremamente espontâneo, que não temvergonha de absolutamente nada. Não há nada que eu não possa fazer, se eu quiser. Sou uma pessoa muito prestativa. Às vezes os outros se incomodam, mas me dá prazer servir às pessoas. Vivi minha vida inteira desse jeito. Também posso dizer que não tenho apego a nada material e que sou um hedonista. Sou capaz de sair daqui pra Baía Formosa pra comer um goiamum. Cansei de sair daqui pra lá, de andar 90 quilômetros, pra sentar, comer um goiamum e voltar. O prazer me move.
ZONA SUL – Você tem um diferencial no seu repertório: canta muito lado B, ou seja, as canções que não fizeram tanto sucesso. Isso é proposital? É seu gosto pessoal ou foi uma demanda do público?
MARCOS – Isso advém de um desejo incontrolável que tenho de descobrir o desconhecido. Gosto de pesquisar, sou apaixonado pela pesquisa. Às vezes descubro uma música que ninguém ouviu falar. Nesses casos, procuro apresentar essa nova canção ao maior número possível de pessoas. Tenho duas filhas: Maria Claria, que tem um gosto mais parecido com o meu, e Luiza Helena, que prefere as músicas mais modernas. Quando descubro algo diferente, mostro primeiro a elas. Eu acho que deveria ter feito História, antes de Direito. Quem sabe um dia anda não concluo esse curso... A História ensina muita coisa. A própria música pode ser instrutiva. Por exemplo: Em “Alfonsina e el mar” Mercedes Sosa canta a história de Alfonsina Storni, filha de pais argentinos que nasceu na Suiça. Era uma poetisa que descobriu que estava com câncer de mama e suicidou-se andando para dentro do mar. Imagine que dor ela sentiu pra cometer um gesto desses. Descobri pesquisando, após ouvir a música. Quando descubro uma nova canção fico igual a um menino que ganhou um brinquedo novo. Onde chego quero mostrar. Descobrir o novo é muito interessante.
ZONA SUL – Recentemente Amy Whinehouse morreu. O que você falaria sobre ela?
MARCOS – Antes de falar sobre essa intérprete, gostaria de dizer que o sucesso é um mar bravio difícil de atravessar. São poucos os que conseguem atravessar, incólumes, o esplendor do sucesso. A história comprova isso. Vários roqueiros morreram aos 27 anos, e aos 30, aos 50, enfim... Amy tinha uma voz belíssima, uma interpretação fantástica. Seu repertório era ótimo. Ela tinha uma expressão fora de série. Acredito que um dos atributos fundamentais dela era a espontaneidade. Era espontânea até demais. Gosto das pessoas que não se preocupam. Faço a barba todos os dias por necessidade, pelo meu trabalho. Mas admiro a pessoa que sai de casa com a barba por fazer, que não usa roupas de marca, que usa palito de dentes. Admiro as coisas espontâneas, que você faz sem querer, faz por fazer.
ZONA SUL – Chegou a hora de você se despedir do leitor do jornal.
MARCOS – Agradeço demais por essa oportunidade. Era um sonho antigo fazer parte desse sucesso que é o trabalho desenvolvido pelo jornal Zona Sul. Sou uma pessoa que pouco falo de mim. Muitos dizem que sou trancado, que não exprimo sentimento. Aprendi que os sentimentos devem ficar dentro de cada pessoa. Porém, essa oportunidade foi muito boa. Falei tanto sobre mim como nunca tinha falado na vida. Gostaria de agradecer a todos vocês, especialmente a Ronaldo Siqueira, que é uma pessoa por quem tenho grande carinho. Todos vocês me deixarão tão à vontade que eu consegui dizer tudo o que gostaria. Talvez eu também tenha dito algumas besteiras. Se for o caso, peço desculpas por isso. Mas é bom lembrar que não há quem não diga as suas bobagens. Agora o que me resta é esperar essa entrevista ser publicada. Obrigado.




quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Entrevista: Sérgio Farias

DE VOLTA AO VELHO CONTINENTE


Incluído em qualquer relação dos melhores músicos potiguares, o violonista e compositor Sérgio Gondim Miranda de Farias nasceu no Rio de Janeiro. Algumas semanas antes de embarcar para uma longa temporada na França, ele conversou comigo, com o jornalista Roberto Fontes e com o advogado Ronaldo Siqueira. O anfitrião, como não poderia deixar de ser quando as entrevistas são realizadas em Natal, foi o Veleiros Restaurante, de Ricardo Menezes. Durante pouco mais de uma hora, Sérgio Farias traçou um resumo de sua trajetória. Falou sobre os irmãos músicos, as precoces apresentações nos barzinhos de Natal, o retorno ao Rio para se aperfeiçoar no violão, o festival de música da Rede Globo e sua primeira ida à França. Vamos acompanhar o que Sérgio tem para contar. (robertohomem@gmail.com)


ZONA SUL – Você não nasceu no Rio Grande do Norte...
SÉRGIO – Nasci no Rio de Janeiro. Meu pai, José Miranda de Farias, era militar da Marinha: vivia viajando. A vida de militar era itinerante. Minha família morou em Belém, Recife, Rio de Janeiro e em Natal. Mamãe era daqui de Natal. Somos sete irmãos. Fui o único que nasci fora. Todos os outros são de Natal. Passei só dois anos e pouco no Rio, não assimilei nada. De lá, meu pai fixou-se com a família em Natal. Só voltei ao Rio já velho.
ZONA SUL – Quer dizer que você não acompanhou a vida itinerante do seu pai.
SÉRGIO – Não. Peguei o final, quase a aposentadoria dele. Meu pai era militar da parte médica, era dentista. Sua participação nas Forças Armadas era mais leve. Nunca senti papai militar, até porque ele deixava essa faceta na Marinha. Fora alguns stress, ele não trazia para dentro de casa.
ZONA SUL – Sua mãe tinha alguma ocupação?
SÉRGIO – Mamãe, Guacyra Gondim Miranda de Farias, é uma heroína, como toda mãe. Além de ter criado os sete filhos, quando completei uns sete anos ela voltou à faculdade. Concluiu e passou a atuar como professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Foi engraçado porque eu acompanhava, como criança, essa participação científica dela. Os outros curtiram mais o lado dela de mãe. Na minha época ela passava o dia todo na universidade, pesquisando.
ZONA SUL – Ela pesquisava em qual área?
SÉRGIO – Bioquímica. Começou a pesquisar nessa área numa época em que não havia nem
centro de pesquisa. Os equipamentos eram adaptados. Quando os pesquisadores de São Paulo vinham a Natal, achavam surpreendente a maneira como os pesquisadores daqui trabalhavam, sem aquele apoio tecnológico ao qual eles estavam habituados. Hoje - graças a esse desbravamento feito por ela e por uma geração de pesquisadores – a bioquímica de Natal é superequipada. Logicamente ainda não é comparada a São Paulo ou ao Rio de Janeiro, mas já atingiu um nível importante.
ZONA SUL – Seus pais tinham alguma ligação com a música?
SÉRGIO – Tanto a família da minha mãe como a do meu pai gostavam muito de música. Eu tinha menos contato com a família do meu pai, que é de Pernambuco. Às vezes a gente passava anos sem se ver, mas quando se reencontrava, parecia que tinha acabado de se deixar. O pernambucano têm um espírito muito vivo e alegre. Não é a toa que o frevo nasceu lá. Meu avô, Mário Henrique de Farias, gostava de cantar e de dançar. Contam que ele saía de casa para dançar. Mas não era em clubes, como hoje. Ele morava no interior, no distrito de Casinhas, em Surubim. Saía de noite para cantar e dançar ciranda com as crianças, na rua. Nem precisava de acompanhamento: era só o canto e as palmas. Quando a gente chegava em Pernambuco, sempre tinha uma ciranda da família nas nossas reuniões.
ZONA SUL – E na família da sua mãe?
SÉRGIO – Dois tios gostavam muito de música e de boemia: Carlos Gondim, o filho, e Tota, o Fernando Antônio. Dentro da minha casa também tinha música. Meu irmão mais velho, Mário Henrique (as pessoas o conhecem pelo trabalho que fez na Banda Anos 60), é um compositor fantástico. É impressionante a tranquilidade com a qual ele toca bossa nova. Ele tem uma facilidade enorme de acompanhar.
ZONA SUL – Mário Henrique foi a fonte através da qual você se inspirou para ingressar no caminho da música?
SÉRGIO – Não sei. De qualquer forma era uma facilidade muito grande ter, dentro de casa, uma referência ótima de violão. No começo eu queria tocar como ele. Mas não havia disputa, porque além de ele tocar muito mais do que eu, na verdade comecei estudando bandolim. Por tocarmos instrumentos diferentes, ele geralmente me acompanhava. Outro irmão, Carlos Gondim, também me acompanhou muito, tocando violão.
ZONA SUL – Nas suas brincadeiras de criança a música entrava de alguma maneira?
SÉRGIO – Dividi muitas brincadeiras com meus primos. A família pra mim era uma coisa
muito legal. Tive muitos primos praticamente da mesma idade. Às vezes juntávamos uns oito, todos na mesma sintonia. Naquela época a gente era mais solto, tudo era mais natural. Sem jogos eletrônicos, o negócio era a criatividade. Brincávamos de forte apache, de jogar bola ou outros jogos coletivos, como esconde-esconde, 31 alerta... Nunca esqueci certa ocasião quando, ao término das férias, comecei a pensar que a volta às aulas significaria uma diminuição no ritmo daqueles encontros. Eu tinha uns sete anos. Foi quando Elis Regina interpretou: “O bêbado e o equilibrista”. Um mês depois de aquelas férias acabarem, bastava eu escutar aquela música que eu caía no choro. A dose emocional era duplicada: o fato das férias terem acabado e própria música, que de tão bonita mexia lá no fundo. Quando a música acabava, eu repetia e chorava de novo. Apesar de naquela época eu já escutar muita música, foi essa a primeira pancada musical que recebi.
ZONA SUL – O que você ouvia?
SÉRGIO – Carlinhos, meu irmão, brincava dizendo: “Serginho, você gosta de escutar esse tipo de música para agradar papai”. Senti uma empatia muito grande com algumas músicas de compositores que saíram em uma coleção de música popular brasileira. Nela vinham discos encartados com seis músicas. Eram de um tamanho intermediário: nem compacto simples, nem longplay. Nessa coleção descobri João de Barro e Alberto Ribeiro, Ismael Silva, Ary Barroso. Gostava mais deles do que dos mais modernos, como Caetano Veloso. Uma das músicas que eu mais gostava era “Antonico”. Quando comecei a tocar violão, com oito ou nove anos de idade, eu já sabia essas músicas.
ZONA SUL – Como você começou a tocar?
SÉRGIO – Aprendi o básico e pouco a pouco passei a conhecer um acorde ou outro mais complexo com meu irmão Mário Henrique. Os sambas que eu gostava não eram tão difíceis como a bossa nova, que tem acordes demais. Não tinham harmonia nem melodia difíceis, nem enorme sofisticação. Mas a letra e a melodia eram bem feitas. Outra música ótima que recordo é “Seu Libório”, de Alberto Ribeiro e João de Barro. Ainda tenho vontade de criar um grupo chamado “Lado B”, pois sempre gostei dessas músicas que ficavam do lado menos interessante do disco. Antigamente o lado A do disco tinha as músicas mais populares. No segundo lado as gravadoras deviam dizer para o artista: “nesse aí você faz o que quiser”. O primeiro lado era para vender o produto. Eu sempre gostei do segundo lado.
ZONA SUL – Mas você estava contando como começou a tocar... Você participou de algum grupo musical na escola?
SÉRGIO – Minha participação na escola, sobretudo até o ginásio, não teve nada a ver com música. As pessoas só sabiam que eu tocava quando tinha, por exemplo, um encontro. Até porque estudei no Colégio Marista no finalzinho da ditadura. Ainda tinha um ranço danado. Não foi uma época boa.
ZONA SUL – Você foi bom aluno?
SÉRGIO – Nunca fui bom aluno. Engraçada essa coisa de ser bom aluno. Somente quando fui convidado pela UFRN para participar de uma banca, de um júri, e para falar sobre a minha experiência na França, foi que me dei conta que nunca tinha gostado de estudar. Apesar disso, fiz uma quantidade enorme de cursos musicais. Só pós-graduações, fiz umas três. Apesar de não ser tão dedicado, enquanto estudava, procurei sempre aprender e absorver alguma coisa. Sobretudo depois de mais velho. Até a universidade, eu estudava para me livrar daquela obrigação.
ZONA SUL – Você foi aluno da então Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte?
SÉRGIO – Sim, fiz mecânica na ETFRN. Se pagassem bem, naquela época, a um técnico de mecânica, eu teria seguido carreira. Adorava abrir um motor, regular um carburador. Depois fiz até o terceiro ano de engenharia mecânica. Vi que não queria aquilo quando fui fazer um estágio. Descobri que o engenheiro tinha que ficar em uma mesa, desenvolvendo projetos, sem se sujar com nada. Eu não queria ser o engomadinho da mecânica. Tive o bom senso de desistir na metade do curso. Depois fiz educação artística, com habilitação em música. Eu queria fazer música, mas não tinha.
ZONA SUL – O que veio primeiro: suas composições ou as apresentações?
SÉRGIO – Comecei acompanhando alguns artistas. Na época foi difícil, pois eu era bem novinho, tinha 16 anos. As primeiras apresentações fiz com Edimar Costa, da Caixa Econômica. Ele também era um cara novo e tinha a versatilidade de acompanhar vários estilos. Edimar gostava muito de Gonzaguinha. Antes de a gente se apresentar, ele teve que ir conversar com o meu pai, assegurar que eu não me envolveria com bebida...
ZONA SUL – Foi quase como um pedido de noivado...
SÉRGIO – Foi. Papai achava a música legal em casa. Mas ele tinha um medo danado da boemia, sobretudo de os filhos passarem a beber. Como eu era o mais novo, a preocupação crescia. Papai não tinha medo de a gente entrar no mundo da droga. Até porque a droga era um negócio escondido e distante da vida de todos nós. Não havia nem recomendação com relação a isso.
ZONA SUL – Onde foram suas primeiras apresentações?
SÉRGIO – Nos bares em Ponta Negra, como “Casa da Sogra”. Tocávamos eu, Edimar, Fábio Fernandez, no baixo, e Carlinhos, na bateria. Depois dessa fase, comecei a fazer uns cursos de harmonia. Não lembro se eu paguei integralmente esses cursos, mas sei que no começo papai não queria ajudar. Usei os cachês com essa finalidade. O professor era Manoca Barreto. Logo que ele voltou do Rio, colocou um cursinho. Devo ter bancado uns dois meses. A partir daí, vendo o meu interesse, papai e mamãe devem ter passado a ajudar. Não lembro exatamente, mas sei que na época foi difícil, houve resistência. Através de Manoca, em pouco tempo apareceram outros trabalhos. Éramos poucos os músicos de Natal que, naquela época, líamos cifra. Contavam-se nos dedos os guitarristas que liam cifras e que moravam em Natal. Apesar de eu ser muito novo, já era requisitado. Manoca foi super importante para Natal: ele ensinou vários músicos a ler cifra e muitas outras coisas. Eu, Erick (que passou mais de 15 anos tocando com Margareth Menezes) e Wallid fomos alguns dos que aprendemos com ele. Toda uma geração foi pegar essa informação que Manoca buscou lá fora. Alexandre Siqueira e Ricardo Menezes foram outros alunos dele. Manoca, quando não podia fazer alguns trabalhos, passava para mim. Foi assim que surgiu a oportunidade de trabalhar com Pedrinho Mendes. Fiz trabalhos com outros artistas que gostavam da praticidade que a banda da gente tinha de ler partituras e cifras, de fazer dois ou três ensaios e não esquecer no próximo encontro.
ZONA SUL – Você tocou com Pedrinho naquela fase do “Boteco”?
SÉRGIO – Não, já peguei Pedrinho na época de campanha, dos carnavais. Fizemos o primeiro Carnatal. Pedrinho era o máximo. Natal mal conhecia as bandas de Salvador. Poucas rádios tocavam uma ou outra música, mas, no geral, ninguém conhecia, com exceção de Luiz Caldas, Banda Mel e duas ou três outras. No primeiro Carnatal, a apoteose do evento foi Pedrinho Mendes e Moraes Moreira. A gente olhava para a Prudente de Moraes, da Praça Cívica, e via
gente entupida até a Apodi. Foi uma grande novidade para Natal, aquele povo todo e os trios elétricos passando. Era enorme a quantidade de pessoas ali. As pessoas tinham uma idolatria por Pedrinho. Fiquei morto de nervoso quando fui ensaiar com ele. Pedrinho era um grande astro e talvez ainda seja para muita gente, ainda hoje. Tenho grande respeito pelo trabalho dele. O brasileiro, de uma maneira geral, não tem muito sentimento de patriotismo, de bairrismo. A gente sempre acha legal o que vem de fora.
ZONA SUL – Talvez seja uma característica do potiguar. Pernambucano, por exemplo, se adora. O paraense e o paraibano também curtem seus artistas. O Ceará, do mesmo jeito.
SÉRGIO – Não sei, mas acho que se Pedrinho tivesse nascido na Bahia, teria sido mais do que Gilberto Gil. No mínimo ele deveria ser para o potiguar como Gilberto Gil é para o baiano. Babal também é outra fera. Tem alguns outros. Era para o potiguar ver Pedrinho em um restaurante e pedir um autógrafo. O cara devia entrar em um bar, ver Pedrinho e sentir orgulho de ter um cara como aquele na nossa terra. Mas vejo o pessoal desrespeitar até Câmara Cascudo! Quantas vezes ouvi comentários de que Câmara Cascudo inventava, quando não sabia determinada história. Quantas vezes escutei essa imbecilidade. Câmara Cascudo é o maior expoente da cultura popular no mundo.
ZONA SUL – E ele construiu sua obra sem internet, com os meios de comunicação precários da época, recorrendo a cartas e bibliotecas.
SÉRGIO – Não existe um paralelo para ele. Não existe pesquisador americano ou francês que tenha feito o que ele fez. E ele recebia a todos na sua casa. Mas a gente não idolatra nem Câmara Cascudo. Tem gente que fica procurando defeitos.
ZONA SUL – Que outros artistas você acompanhou nessa época em que dava seus primeiros passos na música? Você já compunha?
SÉRGIO – Ainda não. Acompanhei vários artistas: Sueldo Soaress, Cleudo Freire, Tarcísio Flor,
Valéria Oliveira, Galvão, Babal... Naquela época as pessoas gostavam do nosso núcleo de instrumentistas. Esse grupo variava alguns integrantes: Manoca (depois ele parou um pouco), eu na guitarra, no baixo Erick (tocava com 100% dos artistas), Eduardo Taufic nos teclados, e Sílvio, na bateria. Depois entraram Distéfano (bateria) e outros artistas. O grupo começou a aumentar até se dividir. Mas foi um núcleo de músicos que acompanhou muita gente, como Antônio Ronaldo, Manassés Campos e o pessoal do Trampo.
ZONA SUL – Foi nessa época sua ida para o Rio?
SÉRGIO – Depois que trabalhei com Joca Costa resolvi fazer um curso de arranjo. Quando fui assumir a direção do Instituto Waldemar de Almeida, da Fundação José Augusto, tive oportunidade de dizer a Joca – que é professor de lá – que devo a ele parte da minha vontade de ser músico. Minha trajetória mudou muito quando o conheci. Ele fazia arranjos belíssimos. Escrevia para cordas, para metais, para flauta... Construía a grade de partitura... Eu queria aprender aquilo. Assim, aos 20 anos, resolvi fazer um curso de arranjo no Rio de Janeiro. Quando concluí, com menos de um ano, surgiram as composições. Por causa do curso, tive que fazer arranjos e composições também. Comecei a compor uma música, duas, três... Quando voltei para Natal um ano e meio depois, estava com umas 14 músicas. Me deu aquela vontade louca de fazer um disco. Foi quando surgiu “Palmyra”, o primeiro CD.
ZONA SUL – O disco foi gravado em Natal?
SÉRGIO – Sim, mas a qualidade na época não era boa, a cidade só tinha um estúdio. No Rio fiz o curso de harmonia com o maestro Yan Gest, acho que ele é até húngaro. Ele representou para
o Rio o que Manoca significou para Natal: trouxe um curso de arranjo para o Rio de Janeiro. Os compositores e arranjadores tinham que estudar com ele. Até hoje ele é referência. Por isso fui lá fazer com ele. Depois de gravar “Palmyra”, voltei com o disco debaixo do braço para o Rio. Visitei as gravadoras que trabalhavam com música instrumental. Gostavam do disco, mas por serem pequenas, não tinham condições de fazer nada. O cara da Perfil Musical disse que também tinha gostado, mas a gravadora havia acabado de investir em Romero Lubambo e na diva do jazz brasileiro, Leny Andrade. Levei também na Vison e voltei achando que não tinha conseguido nada. Mas no outro dia me ligaram dizendo que se eu gravasse de novo, eles lançavam. Avaliaram que as composições eram ótimas, mas que a qualidade de gravação não era nada boa. Fiz um projeto dentro do Profinc e regravei no Rio. Interagi com muitos músicos, conheci Rildo Hora, Sérgio Galvão (irmão do Lula Galvão). Gravei com a Companhia de Cordas do Rio de Janeiro. Conheci Iura Ranevisky, outra figura importante. Em estúdio você conhece muitas pessoas. Foi mais fácil depois voltar pro Rio e começar a trabalhar. Quem também deu muita força foi um amigo daqui, Murilo, que tinha tocado um tempo com o MPB-4. Ele facilitou esse contato. Depois do disco, pude começar a trabalhar no Rio, pouco a pouco.
ZONA SUL – O que você fez de mais importante nessa passagem pelo Rio?
SÉRGIO – Pra mim o mais importante Rio foi mudar minha maneira de tocar. Eu tocava muito pra mim, solava demais. Era igual aquela pessoa que, numa conversa, fala muito e ouve pouco. Então, comecei a relaxar mais. Percebi que a minha participação tinha que ser menor em todas as músicas. Pra mim foi difícil. Você pode ser o artista principal, mas está tocando em um grupo. Esse comportamento você tem que guardar para o resto da vida. A música é um trabalho em equipe. A dúvida entre um ser humano e outro é grande, imagine entre vários músicos tocando uma peça. A música suscita esse descobrimento interior. A prática musical leva você a algumas reflexões e atitudes. Ao mesmo tempo, é como criar um filho. Estou criando um filho agora. Estou com um menino lá em casa. Você nunca sabe bem como vai proceder. Você tem que refletir o tempo todo. São sempre situações novas, nunca é a mesma situação. As músicas que aparecem para a gente tocar dão isso pra gente. Quanto mais experiência você tem para tratar com a música, melhor. A música é muito exigente, ela lhe obriga a ficar em forma, sobretudo intelectualmente. A música é como um diálogo. Se você está falando com uma pessoa e ela começa a olhar para o lado, ela perde o fio da meada um pouquinho, quando volta, não está mais por dentro daquele assunto. Se é em grupo, pior. Se tem várias pessoas interagindo dentro de uma peça sonora, aí é que é complicado mesmo. Tem gente que é muito desleixado tocando. Bota as notas dentro do compasso e nem escuta. A música é uma exigência profunda.
ZONA SUL – Você se apresentou com quem nessa primeira temporada no Rio?
SÉRGIO – Toquei com vários artistas. Tive um parceiro que foi muito legal pra mim, o Miltinho, do MPB-4. Ele é um excelente compositor, apesar de o Brasil pouco conhecer. E olhe que tem muitas músicas consagradas, como “Cicatrizes”, que Roberta Sá gravou agora. Ele tem um trabalho fantástico. E como integrante do MPB-4, nem precisa ser apresentado. A gente fez um trabalho instrumental e cantado muito íntimo. Eu tocava bandolim e violão com ele. Teve
também a Dora Vergueiro, filha do Carlinhos Vergueiro. Também toquei com a Carol Saboya, filha do Antonio Adolfo. Teve uma temporada que integrei o Quarteto em Cy, quando a Celinha não pôde tocar. Tive um trabalho de parceria com a Simone Guimarães, com quem toquei um tempo. Eu era do Rio Grande do Norte e ela de Santa Rosa de Virtebo, interiorzão brabo de São Paulo. Ambos chegando ao Rio de Janeiro, àquela coisa grande. Também interagi com o Mauro Aguiar, que hoje é parceiro do Guinga. Foi o Guinga quem me apresentou a ele. Gravei um filme cujos arranjos foram de Maurício Maestro e, dessa forma, fiquei amigo dele. Quando houve aquela classificação minha no Festival da Rede Globo, em 2000, ele fez os arranjos. Uma coisa vai puxando outra.
ZONA SUL – Como foi a história desse festival?
SÉRGIO – Escolheram a minha música entre 24 mil e poucos candidatos inscritos.
ZONA SUL – Você tinha esperança de classificar alguma música para a fase final do festival?
SÉRGIO – Tive um pouco de esperança porque a Simone Guimarães, que tem uma belíssima voz, cantou na gravação. Tinha uma possibilidade, de repente. Mas não achei que tivesse uma forte chance.
ZONA SUL – Você estava morando no Rio ou em Natal?
SÉRGIO – Em Natal. Antes do festival começar, fizeram quatro ou cinco reuniões. Na primeira, um diretor da Globo chegou pra gente e disse: “quem acha que isso é um festival de música, está enganado. Isso é um festival de imagem, é um festival da Rede Globo”. Foi a primeira coisa que ele falou. O que valia era a imagem, as performances, os aspectos. Ali eu vi logo o que aquele festival seria. Mas, como eu dizia, passei uns quatro ou cinco anos morando no Rio, tocando com esse pessoal. Coloquei a cara entre os violonistas do Rio de Janeiro daquela época. Pensei que chegaria lá e seria apenas mais um violonista desapercebido. Mas notei que a música é uma coisa especial mesmo, sobretudo dentro de uma área específica. Na área da bossa nova, disponível para trabalhar, com gás para acompanhar um novo cantor e também com um cachê acessível, não tinha 500 violonistas. No final, mesmo longe de ser um violonista famoso no Rio, me tornei uma pessoa conhecida em todos os meios. Fui indicado para tocar com vários artistas, entre eles Ivan Lins.
ZONA SUL – Vamos falar na sua fase da França.
SÉRGIO – Voltei do Rio para Natal, e, depois que fiz meu curso superior, surgiu a oportunidade de uma bolsa da CAPES. Eu já estava praticamente noivo, minha esposa é cantora lírica. Nós dois fizemos projetos para uma bolsa de estudos da CAPES pra França, na mesma escola. Na época eu já era parceiro de Hermínio Belo de Carvalho, que fez uma carta de apresentação para mim. Acho que Miltinho também fez. Eu tinha várias cartas de recomendação de músicos da MPB, um belo currículo e dois discos publicados: “Palmyra” e “A nuvem acende”. Minha esposa fez também e o projeto dela foi aceito. Fomos para a França começar tudo do zero. Lá a linguagem musical é muito diferente. O francês tem uma paixão pelo som enorme. Se o músico tem uma grande virtude - que ele chama virtuose - no instrumento, tem uma velocidade muto grande, mas as notas não são muito bem explicadas, se o tempo não é precisamente controlado, se a emoção daquela pessoa não está na mão daquele artista, e se ele não dá o máximo de si e o som dele não é belíssimo, esse artista não terá muito futuro. Mas de todas as exigências, as maiores são o som e a afinação. Você tendo um belo som e uma bela afinação, eles perdoam um pouco o resto. No Brasil a gente é muito emotivo, gosta muito da cena, do palco, da performance da pessoa. O artista tem que dar um show, um espetáculo. Percebi morando na França que a grande referência do brasileiro são os Estados Unidos.
ZONA SUL – Na França você tocou profissionalmente?
SÉRGIO – Lá fiz curso de composição para música de filme e também fiz várias apresentações. Uma semana depois que toquei pela primeira vez na França, meu telefone tocou. “Estou ligando porque um amigo músico viu você tocar e me recomendou, pois estou precisando de alguém que toque jazz, algumas coisas latinas e tal”. Depois desse segundo show, outro telefonema. No terceiro ano em que eu estava na França, meu telefone tocava três ou quatro vezes por semana. Eram pessoas diferentes procurando músico. No meu penúltimo ano na França fiz 67 concertos com artistas brasileiros, franceses e também apresentando meu trabalho. Aqui, pra fazer uma quantidade de show dessa tem que ser um artista de muito nome. Lógico que o fato de ser violonista é bom porque você se integra a vários grupos, mas pra um mercado musical, é fantástico.
ZONA SUL – Além disso, pelo que você mesmo falou, é fantástico pelo fato de o mercado ser superexigente. E de você ser um estrangeiro.
SÉRGIO – Por falar nisso, é um mito terrível que eles tenham alguma coisa contra contra brasileiro. Quando a gente vai para um lugar acaba entendendo algumas coisas, mesmo que não apoiando. Por exemplo: quando um estrangeiro vem ao Brasil e observa a violência e a miséria, ele não vai defender, mas vai entender o que são esses fenômenos. Vai saber que o brasileiro pode ir com certa tranquilidade a um restaurante à beira-mar sem sentir pavor de ser assaltado. Pelo menos a maioria das pessoas não sentem esse pânico. Para o estrangeiro a visão é mais ameaçadora. Já na visão do brasileiro, o estrangeiro é o cara que trás o dinheiro. Porém, de uns três anos para cá o brasileiro está percebendo que o estrangeiro também pode representar um problema. Ele pode estar aqui pelo turismo sexual, ou porque é trambiqueiro, ou até por estar usando dinheiro de maneira ilegal... Em suma, ele traz muita coisa positiva, mas também tem seus probleminhas. Na França é o contrário. O estrangeiro que se instala lá traz, na visão do francês, um problemão. Acima de tudo, ele vai usufruir de alguns direitos sociais concedidos no país. Independente de ser francês ou não, na França todo mundo tem. Então, na medida em que chega um a mais, vão ter que repartir a mais um bolo que continuará do mesmo tamanho. O francês também está perdendo poder aquisitivo.
ZONA SUL – Com todas essas oportunidades na França, porque você retornou para Natal?
SÉRGIO – Meus pais estavam doentes e eu estava cansado. Não morar no seu país é muito. Chega um momento em que a pessoa se estafa, fica estressada. É muito tempo você desconectado de tudo, até da maneira de falar. Eu falava português com a minha esposa, mas tinha todo um universo de amigos franceses. Consegui amigos fantásticos.
ZONA SUL – Como é hoje sua relação com a música?
SÉRGIO – O principal de uma música é a mensagem. Se eu vou dizer uma mensagem que você
não é sensível a ela, é a mesma coisa de eu estar falando com uma parede. Se o povo hoje só abre o canal do seu coração pra se liberar, para dançar - que é bom também, faz parte – ele só vai receber aquilo. O processo de mudança ao qual me submeti no Rio de Janeiro e também na França me fez melhorar um bocado. Fiquei mais atento com o meu som, passei a me olhar mais. Não melhorei porque estou tocando melhor, mas por ter ficado mais crítico comigo mesmo. Estou cada vez mais exigente e vigilante comigo mesmo e sobretudo isso: eu acho cada vez mais importante o que eu faço. Engraçado, tem tanta gente com profissões tão importantes, mas as minhas notas musicais já me levaram para tanto canto... Já fui para Nova Caledônia (arquipélago da Oceania), para o Caribe, França, Portugal, Itália, Espanha, passando muitas vezes dois ou três meses em cada lugar. Passei dois meses e meio na Itália, conhecendo cada lugarejo. Passamos quase um mês na Espanha, degustando os vinhos, comendo jambon, o presunto.
ZONA SUL – Fale um pouco do trabalho da sua esposa, a cantora lírica Alzeny Nelo.
SÉRGIO – Ela foi uma coisa fantástica na minha vida porque sou músico popular. Não somente a música que ela gosta é erudita, como ela própria é erudita. Alzeny é uma personalidade assim: ela combina demais com a França, é impressionante.
ZONA SUL – Ela é de Natal?
SÉRGIO – Sim, ela é da Cidade da Esperança. Alzeny tem um temperamento bem adequado ao tipo de música que escolheu. Termina me complementando, pois sou bem alvoroçado. A música popular tem um lado rítmico muito forte: o bolero, o samba, o chorinho... Quando a gente fala em música popular, o ritmo vem logo junto. Na música erudita a percussão é um detalhe. Só “Bolero”, de Ravel, que tem aquela marcação contínua. No resto das músicas a percussão é um detalhe, um bolo na cereja. O cara fica um ano esperando um prato. A harmonia, o ritmo são as cordas. Você imagina 80 músicos tocando juntos. Aquele ritmo é muito flutuante. É preciso e não é. São vários músicos que vão dar o ritmo, e geralmente de natureza diferente. Às vezes é a flauta que dá o ritmo, noutras é o violoncelo, a corda grave. Esse bando de instrumentos tocando juntos é uma loucura. A noção de tempo de cada um é diferente. Já começa daí o grande aprendizado. E pra você tocar no tempo tem que ouvir aquele bando de instrumentos e jogar a nota naquele exato instante. Diferente do violão, que o cara toca a corda e o outro responde no baixo e o outro na bateria. Em um grupinho pequeno, a mensagem é rápida. A música erudita é delicada pela sua própria formação. Então, acabei assumindo esse mundo de Alzeny também. Compus uma sinfonia na época em que estudei na França. Fiz em homenagem a um músico de Natal que tinha falecido, Carlão, da Orquestra Sinfônica. A sinfonia chama-se “No tempo das árvores”. Foi apresentada uma vez. Estudei música erudita e análise musical durante quatro anos, na França.
ZONA SUL – Como surgiu a oportunidade de voltar a morar na França.
SÉRGIO – Agora vamos em outras circunstâncias. Já fiz um belo núcleo de amigos, que é o principal na vida. Já volto tocando em grupos musicais, e tenho até show marcado lá. Tenho coisa marcada até em novembro de 2012! Esse show será em uma casa de jazz, acompanhando uma cantora. É muito raro conseguir espaço lá. Eles dão oportunidade de você ensaiar cinco dias no lugar, antes do show. A cantora me disse que a agenda desse local está completa até 2015.
ZONA SUL – A França será a sua base, mas você deverá tocar na Europa toda.
SÉRGIO – É, com certeza. A base é a França. E é uma base fantástica e legal.
ZONA SUL – Você já domina o francês.
SÉRGIO – Falo fluentemente. Lógico que aqui e acolá posso cometer um erro. Mas isso é comum
até no português. Para viver na França é diferente. O brasileiro é muito mais acolhedor, ele aceita que o estrangeiro passe a vida toda sem aprender o português. O espanhol ou o alemão vem para o Brasil e não domina a pronúncia de algumas palavras e não aparece um brasileiro para corrigi-lo, não liga muito para isso. Mas, para o francês, a linguagem é muito importante. A gente tem que respeitar essa diferença. Você deve aceitar o francês como ele é e não criar um gueto e se juntar com um bando de outros brasileiros. Ainda mais você como visitante.
ZONA SUL – Seria a mesma coisa de ir a uma festa e se juntar em um grupinho para falar mal do dono.
SÉRGIO – É, estou indo para a casa deles. Se a gente colocar dentro dessa maneira, eu estou indo para a casa de uma pessoa. Então tenho que respeitar o dono.
ZONA SUL – Você vai ficar em Paris?
SÉRGIO – Sim, em Paris.
ZONA SUL – Chegou a hora de partir para os finalmentes: você tem algum plano específico, pensa em gravar?
SÉRGIO – Desde 2005 estou compondo para o terceiro disco. Fiz vários experimentos em estúdio. Gravei três, quatro músicas e vi que não era aquilo que eu queria. Agora, depois desse tempo todo, é que estou voltando uma ideia que tive em 2005. Acho que naquela época eu não tinha habilidade para tocá-la. Eu não estava satisfeito. É uma coisa muito delicada você formar um grupo para gravar um disco. Na época eu gostaria de ter feito violão, baixo acústico e percussão. Eu queria menos ritmo no meu trabalho. Queria uma coisa bem silenciosa, para que a escuta do violão fosse bem presente. Quando o violão vai tocar com o piano na mesma hora, é muita frequência. Acusticamente já é difícil de equilibrar esses dois instrumentos. Quando você vai tocar com outro instrumentista, tem que ser muito planejado. Dois violões, um violão e uma guitarra... Tem que ser tudo muito combinadinho. Na medida em que você não tem esse outro instrumento harmônico e o solista, é só o violão, você tem muito espaço. Mas aí você tem que ser muito sintético também, porque se você tocar demais, acaba anulando os outros instrumentos que também tem que falar. Na época eu tentei e não consegui. Agora estou mais satisfeito. Já fiz umas gravações aqui...
ZONA SUL – A tecnologia em Natal já melhorou ao ponto de ser possível gravar um disco com qualidade?
SÉRGIO – Já, agora está tranquilo. Pode gravar aqui e lançar até na França, sem problema nenhum.
ZONA SUL – Como seus fãs aqui em Natal e no restante do país poderão acompanhar suas aventuras nessa nova temporada que você passará na Europa?
SÉRGIO – Acho que pelo Facebook. Agora, pela primeira vez, estou dando mais atenção à
internet. Talvez porque a internet esteja mais interessante. No começo era um negócio aberto onde as pessoas escreviam o que queriam... Hoje está mais regulamentado e os sites estão mais interessantes. Por outro lado, em ferramentas como o Facebook a gente termina encontrando pessoas com afinidades parecidas e dizendo coisas interessantes também. No Facebook publico pouca coisa. Por exemplo, não publiquei nenhuma música minha. Vou começar a explorar o Youtube também. No Facebook as pessoas podem me encontrar pesquisando Sérgio Farias. Mas penso em fazer um site. Logo que ele esteja pronto, divulgarei pelo Facebook. Meu irmão Carlos Gondim é o grande incentivador.
ZONA SUL – Sua esposa também vai para a França?
SÉRGIO – Sim, e meu filho, Paulo Henrique, que tem três anos. Ele já toca bateria. Paulinho começou a tocar bateria com um ano e meio. Eu toco violão, o último instrumento que eu o estimularia a tocar seria a bateria. Mas ele acordava de madrugada e pegava várias bacias, com um ano e meio, e ficava tocando. E dizia: “bateria, bateria”.
ZONA SUL – Para o pai deve ser uma “maravilha” acordar de madrugada com o filho tocando bateria...
SÉRGIO – Já me acostumei. Dois meses depois de ver essa coisa natural dele, comprei uma bateria.
ZONA SUL – Deixe uma mensagem para o leitor do jornal.
SÉRGIO – Sinto, com os 39 anos que tenho hoje, que a vida é muito boa. A ideia original da
vida, eu sinto isso, é perfeita. A gente tem um planeta belíssimo, eu sinto que a missão que temos no mundo é muito simples: é se relacionar. Essa é a coisa mais importante que temos que aprender: se relacionar bem com a natureza e com o ser humano. O que estou buscando é não atrapalhar o fluxo natural da vida. Ou seja, fazer as coisas que vão contribuir para o meu crescimento. Luto muito para procurar não me sentir especial. Especial de verdade, para mim, é ser mais um. É ser uma pessoa que, se não atrapalhar, já está bom. Essa mania de que a gente tem que ser grande atrapalha muito. A gente se envolve demais com os problemas cotidianos, fica fixado naquela vida pequena, voltado para nosso núcleo, nossa família, para meu filho, minha mulher, para o meu, o meu... E vai dando as migalhas para o próximo. O que sobra do estresse do dia a dia é o que a gente dedica ao próximo. Precisamos reverter esse quadro, a família é importante, mas a grande família é mais importante.