quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Entrevista: João Bosco

AS MEMÓRIAS E OS SEGREDOS DE UM SERTANEJO

No dia 24 de março de 1956, dona Alzira Tavares de Araújo saiu da propriedade rural localizada em Umbuzeiro e foi até Caicó para ter o seu quarto filho. Até então, haviam nascido três meninas. João Bosco de Araújo foi o quarto e primeiro dos três filhos homens que dona Alzira teve. Bosco nasceu na cidade, das mãos de uma parteira, e voltou para o sítio. Somente alguns anos depois, retornou a Caicó para estudar. De lá, ganhou o mundo. Hoje mora em Brasília. Na capital federal trabalha como jornalista do Ministério da Saúde. Também escreve um importante blog do cenário político-cultural potiguar, o AssessoRN. Durante mais de quatro horas ininterruptas, Bosco fez uma retrospectiva detalhada de sua vida. Nesse período foram consumidas algumas garrafas de vinho, outras tantas latas de cerveja e porções de linguiça, frango assado e frango à milanesa, acompanhados de salada de maionese e farofa. O álcool e os carboidratos fizeram com que Bosco falasse como se estivesse diante de um confessionário. Nenhuma pergunta ficou sem resposta. Nenhum segredo permaneceu oculto. Testemunhando essa catarse estivemos eu e o repórter fotográfico Roque de Sá – direto de Brasília – e o jornalista Roberto Fontes e o advogado Ronaldo Siqueira, via Skype, participando de Natal. Essa entrevista também está disponível no site http://zonasulnatal.blogspot.com (robertohomem@gmail.com)


ZONA SUL – Você nasceu em Caicó...
BOSCO - Sim, na Rua Augusto Monteiro. A casa ainda existe, mas não pertence mais à minha família. Ela ficava no centro da cidade, em frente a uma usina de beneficiamento de algodão pertencente ao ex-governador Dinarte Mariz. Essa usina funcionou no local até os anos 1960. Depois de ter ficado fechada cerca de uma década, a usina foi demolida e o terreno passou a sediar lojas de comércio e oficina mecânica. Hoje a rua é totalmente comercial, mas a nossa casa - que foi vendida após a morte do meu pai, em 1981 - ainda existe. Meu pai, Pedro Salviano de Araújo, sempre foi agricultor e morou na zona rural. Ele nasceu no Sítio Umbuzeiro, em 1907, a 25 quilômetros de Caicó, na divisa com Ouro Branco. Minha mãe, Alzira Tavares de Araújo, nasceu em São Mamede, na Paraíba, em 1929. A casa foi vendida porque, naquele período, meus irmãos já moravam em Natal. Viúva, mamãe foi morar com os filhos. Minha mãe ainda está viva. Os pais dela foram chapeleiros: Severino Tavares de Araújo e Luzia Maria da Conceição. Casaram na Paraíba e, depois de três anos juntos, mudaram para Caicó. Foram pioneiros nessa arte de fazer chapéus de couro. Depois eles levaram vários parentes da Paraíba para morar no Rio Grande do Norte. Minha mãe e meus tios foram educados graças aos recursos que meus avós conseguiram trabalhando com a fabricação e a venda de chapéus. Em 1945 minha mãe foi designada para ser professora na região de Umbuzeiro. Lá, conheceu meu pai. Quando casaram, ele já tinha 42 anos.
ZONA SUL – A casa da fazenda onde o seu pai morava ainda pertence à família?
BOSCO – Nós a vendemos entre 1983 e 1984, mais ou menos na época em que também negociamos a casa de Caicó. Com o dinheiro, compramos a atual casa, em Natal, onde minha mãe mora hoje, aos 82 anos, com a com a minha irmã mais velha, que é professora aposentada e tem 63 anos. Nós somos sete irmãos: quatro mulheres, que nasceram primeiro, e três homens. Sou o mais velho dos homens. Minha mãe foi professora até por volta de 1952, quando nasceu sua terceira filha. A partir daí ela entregou o cargo na prefeitura e passou à atividade doméstica. Aposentou-se pelo INSS como costureira. Meu pai, antes de se casar, era comerciante-tropeiro. Ele conduzia os animais para o trabalho em usinas de cana-de-açúcar instaladas no sul de Pernambuco. Após o casamento, em 1947, se dedicou exclusivamente à família, na fazenda.
ZONA SUL – Quais as recordações que você guarda dos seus primeiros anos de vida?
BOSCO – Minha mãe resolveu desde cedo que educaria os filhos, ao invés de nos deixar seguir a
sina de ser vaqueiros. Meu pai queria que os filhos fossem caminhoneiros. Antes de casar, ele foi noivo de uma mulher, Severina, mas não casou com ela. Meu pai foi vivo, escolheu minha mãe, que era professora, ao invés de Severina, que era analfabeta. A gente nascia em Caicó e depois ia para o sítio. Quando chegava a época de estudar, ia para a casa do meu avô, pai da minha mãe, na Rua Augusto Monteiro. Meus irmãos se chamam Gilberto e Flávio. Depois que três das minhas irmãs – Socorro, Salete e Sônia – já estavam estudando e morando nessa casa do meu avô, quando chegou a vez de minha irmã Suelen ir também, meu pai comprou a casa vizinha à do meu avô. Nós, os filhos que estudávamos, moramos lá. Meus pais iam duas vezes por semana visitar a gente e levar mantimentos, como leite e queijo, que eles mesmos produziam. Um desses dias era o sábado, que era dia de feira.
ZONA SUL – Quer dizer que a sua infância foi um pouco distante dos seus pais.
BOSCO – Sim, por isso tive mais afinidade com a minha avó. Fui alfabetizado na escola de Dona Marizene. Nasci na cidade, nas mãos de uma parteira. Meu pai era um pequeno fazendeiro, tinha 300 hectares de terra. Como a região é pobre, ele era, digamos assim, classe média. Até os sete anos morei na roça, mas como privilegiado, na fazenda. Por perto tinha gente que passava fome. A gente naquela alegria, no jantar, e eles bem pertinho da casa grande onde a gente morava. Eu, como criança, não percebia isso. Tomei consciência depois. Meu pai ajudava essa família. Nós, os filhos, éramos ilhados desses problemas sociais. Meu pai era generoso, também costumava ajudar os parentes e os vizinhos que mais precisavam. Ele tinha uma caminhonete 1951 Chevrolet, comprada em Campina Grande. Esse veículo transportou muita gente na região. Outras pessoas tinham carro, mas não davam carona nem nada. Meu pai era o contrário. Chegava gente de madrugada pedindo para levar alguém para o hospital. Até defunto ele carregou em cima dessa caminhonete. Fazia sem cobrar nada. Ajudava a quem podia. Minha mãe tinha outras características marcantes, como seu lado de liderança e de organização muito fortes.
ZONA SUL – De quais jogos e brincadeiras você participou na infância?
BOSCO – Eu gostava muito de jogar futebol. Também fazia coruja, que chamam de pipa. A barra-bandeira era toda noite, era sagrado. Lembrei-me de um fato interessante: quando criança eu era metido a besta e meu apelido era Boscão. Eu era valente, mas depois, quando cresci, coitado... (risos) Deus sabe o que faz! Nunca tive inimigo, mas, quando criança, andei me estranhando com um colega conhecido por Geraldo Besteira. Nossa turma brincava de manzuá, de bandido, de tica... Tinha também o garrafão. Uma vez, brincando de garrafão, dei uma lapada tão grande que Geraldo Besteira caiu. Nessa brincadeira, quem fica por último leva uma porrada. Um tempo desse ele veio falar comigo, em Natal: “Bosco, você se lembra que a gente era intrigado?”. (risos)
ZONA SUL – Então vocês já fizeram as pazes.
BOSCO – Sim. Quando eu era criança, não podia ver alguém da minha idade que dava vontade
de bater nessa pessoa. Tinha uma raiva danada de menino. Lembro também que eu costumava ameaçar um senhor, contratado do meu pai, que fazia remonte de selas e cangalhas de animal. Eu costumava dizer a ele: “vou matar você, seu velho safado”. (risos). Nessa época eu adorava ameaçar que matava, que esfolava... Eu tinha mesmo uma inclinação muito ruim. Acho que se eu tivesse nascido antes, teria virado um cangaceiro ou um bandido.
ZONA SUL – Então se pode dizer que Lampião teve sorte, não foi obrigado a enfrentar a sua concorrência. (risos). Você
BOSCO – Não vamos exagerar... (risos). Mas eu queria contar que quando meus tios - os irmãos da minha mãe - foram embora para São Paulo, deixaram muitos livros. Li muitas publicações de filosofia lá na casa da minha avó. Mas o que eu gostei mesmo foi da sobra deixada pelo meu tio Antenor, que era uma pessoa bem participativa na vida social. Tio Antenor teve até blocos de carnaval. Foi com esse material que aprendi a tocar tamborim, chocalho e outros instrumentos de percussão. Hoje sou percussionista. Aproveitei as sobras do bloco de carnaval do meu tio para aperfeiçoar nossas brincadeiras. Por exemplo: fizemos o nosso próprio circo. Eu era o diretor: armava as tramas, as cenas... Nos Sete de Setembro, também, a gente construía os instrumentos e tocava na rua.
ZONA SUL – E os estudos?
BOSCO - Eu cursava o ginásio. Quando terminava a aula - depois que almoçava, em casa - ia brincar na rua, ao invés de estudar. Sorte que eu não era muito burro, pelo contrário, era sabido. Enquanto alguns colegas bagunçavam durante as aulas, eu ficava na minha escutando, prestando atenção, vendo o que a professora ensinava. O dever de casa eu já fazia na hora em que estava copiando no caderno. Já levava para casa tudo pronto. No outro dia era só entregar a ela.
ZONA SUL – Você já pensava em ser jornalista?
BOSCO - Até a véspera de eu fazer vestibular, queria ser engenheiro. Esse era o meu sonho. Já o meu pai queria que eu fosse advogado ou juiz. Foi em 1968, quando eu tinha uns 12 ou 13 anos, que começou a aparecer essa escoliose que tenho até hoje. A partir daí a minha vida e a minha personalidade começaram a mudar. Passei a me sentir rejeitado. Com a escoliose, passei a ser excluído. Meu pai até tinha condições financeiras de pagar um tratamento para mim, quando o problema apareceu. Seria até fácil corrigir, eu soube depois. Hoje em dia até com exercícios feitos na natação se corrige. Minha irmã, com o mesmo problema, já tinha se submetido a um tratamento com colete. Mas parece que ficou pior, não houve êxito nesse tratamento. Provavelmente por isso meus pais resolveram não repetir esse tratamento comigo.
ZONA SUL – Você ficou revoltado quando passou a se sentir rejeitado?
BOSCO – Sim, um pouco. Eu me olhava no espelho e não aceitava. Como já tinha uma inclinação ruim, sem perceber eu descontava maltratando as pessoas. A única coisa boa é que fui dispensado da educação física. Mas, em compensação, eu queria jogar bola e não podia. Também fui excluído da banda da cidade. Eu tocava tarol como ninguém. Esse é um instrumento muito
difícil, requer muita habilidade. A banda tocava no desfile de Sete de Setembro. Cheguei a desfilar um ano, mas, logo em seguida, fui desligado do grupo. Então, excluído da educação física, dos jogos e do desfile, criei a minha própria banda e a brincadeira de circo com os colegas. Construí um tarol com couro de gato. Consegui restos do couro em oficinas de instrumentos musicais. Alguns dos instrumentos da banda aproveitamos das sobras do meu tio. As cornetas foram feitas com mangueira. A gente saía à noite tocando nas ruas próximas lá de casa. Muitos que tocaram comigo, depois foram para a banda da cidade. Anos depois surgiram em Salvador aquelas bandas, como a Olodum, montadas com a participação da população. Mais ou menos como a gente tinha feito lá em Caicó. Nas brincadeiras de circo eu tocava uma bateria construída por mim mesmo. Além de diretor, eu era o baterista. A gente usava um armazém abandonado para as brincadeiras. O lugar tinha sido uma fábrica de queijo. Esse ano foi muito intenso de brincadeiras: só não rui reprovado na escola por milagre. Dois colegas não tiveram essa sorte. Na verdade, a gente não estudava, só brincava.
ZONA SUL – Por que você saiu de Caicó e para onde foi?
BOSCO – Morei em Caicó até 1973, quando completei 17 anos. De lá fui para São Paulo. Resolvi ir embora para um centro grande justamente por me sentir excluído. Eu ia para os clubes e não arranjava namorada. As mulheres só queriam galã. Na escola eu era vítima de piadinhas, como me chamarem de Nélson Ned. Mas eu levava na esportiva e respondia: “eu não pareço com Nélson Ned, ele é quem parece comigo”. Apesar de eu não me incomodar mais com essas gozações, comecei a beber. Caicó não tem muitas diversões a não ser frequentar bares. Como eu não estava fazendo muito sucesso nos clubes perto lá de casa, passei a frequentar os bairros mais afastados, como o João XXIII, onde as meninas pobres não tinham aquele “cu doce” comum nas garotas da sociedade. Naquele tempo eu bebia conhaque e cinzano. A gente arrumava as meninas e descia para a beira do rio. Na época não se transava, mas a gente tirava um sarro. Na periferia tudo transcorria numa boa. Foi quando minha irmã se casou com um marceneiro. Desempregado e sem formação acadêmica, precisando trabalhar, ele atendeu ao convite do Tio Antenor, que já morava em São Paulo, e foi tentar a sorte na capital paulista. Minha irmã me convidou para ir com eles e eu topei.
ZONA SUL – Pelo visto, já que você não estava fazendo nada mesmo, deixar Caicó não foi tão difícil.
BOSCO – Eu não tinha concluído ainda o segundo grau, o ano letivo sequer tinha terminado, mas, mesmo assim, fui. Antes de ir para São Paulo eu tinha trabalhado com o namorado de outra irmã. Ele era representante do Óleo Mavioso, produzido em Jardim do Seridó. Eu tinha uns 15 pra 16 anos. Arrecadava o dinheiro no comércio de Caicó e levava para Jardim, de do ônibus. Isso me deu muita responsabilidade. No final de semana esse “cunhado” saía com a minha irmã e me levava. A gente ia tomar cerveja na AABB. Na hora da conta, enquanto todos pensavam que ele estava bancando a minha parte, acontecia era o contrário: ele registrava tudo e descontava na hora de pagar meu salário. Nesse emprego eu só ganhei experiência, responsabilidade e a bebida. Quando fui para São Paulo, arranjaram um senhor para me substituir. Na primeira viagem ele roubou uma caixa de óleo. Botaram pra fora e contrataram meu irmão, Gilberto. Ele era mais novo do que eu um ano. Quando eu estava mamando, ele nasceu e tomou o peito de mamãe. Eu era puto com ele. (risos). Quando cresceu virou um monstro, de grande. Depois sofreu um acidente e quase morreu. Hoje esse meu irmão trabalha no Bradesco.
ZONA SUL – Como foi a vida em São Paulo?
BOSCO – Fiquei dois anos em São Paulo, até 1975. Morei no bairro Santana. No primeiro ano, por já ser final de ano letivo, fiz um curso de contabilidade, à noite. No ano seguinte fui estudar em uma escola estadual perto da casa do meu cunhado. Lembro que certa vez o professor de literatura organizou um trabalho de pesquisa que era visitar algumas redações de veículos de comunicação em São Paulo. Foi quando estive no Estadão, no Grupo Abril, na Folha... Achei aquela vida bacana. Gostei do tipo de trabalho, ali sentado, escrevendo. Mas eu queria ainda era ser engenheiro. Naquele tempo eu era bem magro. Em seguida fui para o alistamento do Exército. Fui dispensado por insuficiência física. Paralelo a isso comecei a assistir os programas de Benito de Paula. Na metade dos anos 1970 o Brasil estava cheio de problemas sociais, a luta contra o regime militar estava pegando fogo e a ditadura continuava a torturar nos porões, enquanto os guerrilheiros assaltavam bancos e sequestravam diplomatas. E eu permanecia alienado a tudo isso. Só me politizei na universidade.
ZONA SUL – Em São Paulo você conseguiu trabalhar?
BOSCO – Fui para São Paulo dar um pontapé inicial na minha vida, na minha carreira. Quando completei 18 anos comecei a fazer testes em empresas. Fiz um curso de auxiliar administrativo, da prefeitura, que incluía datilografia e relações públicas. Passei a fazer provas para trabalhar como contínuo. Tentei na Credicard, no Banco Mercantil de São Paulo e em outros locais. Foi quando minha irmã, depois de ter desistido de um trabalho que arranjou, resolveu voltar para Caicó. Como eu não tinha conseguido nem emprego, nem namorada, voltei com ela. Apesar de não ter sequer iniciado a minha vida profissional em São Paulo, em compensação foi lá que que tive a minha primeira noite como homem.
ZONA SUL – Como foi?
BOSCO – Fui até a Boca do Lixo com o irmão do meu cunhado. Lá ele me deu uma grana para eu pagar a prostituta e foi embora. As “meninas” ficavam desfilando com aquelas botas de salto alto. Eu nem tinha carteira de identidade, levei o registro de nascimento no bolso. Naquela época não tinha Aids, só tinha doença venérea. Esse cara me deixou na Boca do Lixo como quem solta um bicho faminto. Peguei uma mulatona novinha. Fomos a um hotel que cobrava por hora. Funcionava em um prédio antigo. Na portaria, pediram meus documentos. Lá em cima tinha vários quartos. O pagamento era adiantado. Só que, quando o cliente estava animado, um cara vinha e batia na porta mandando apressar, dizendo que o tempo tinha acabado. Por conta dessa agonia toda, nessa minha primeira vez nem houve penetração. Não deu tempo. Quando acabei, a mulher se levantou, se lavou e caiu fora. Mas foi bom porque aprendi o caminho.
ZONA SUL – Como foi o retorno a Caicó?
BOSCO – Na volta concluí o segundo grau no Colégio Diocesano. Cheguei na cidade usando cabelo black power e calça boca de sino. No primeiro dia no colégio a professora perguntou de onde eu estava vindo. Quando respondi que era de São Paulo, as meninas completaram: “do Potengi... São Paulo do Potengi”. Terminei o científico e fui prestar vestibular em Natal. Como eu sempre tirei notas razoáveis em Caicó, achei que seria aprovado. Foi uma decepção quando saiu o resultado e não passei. Reprovado, com o apoio das minhas irmãs entrei no Ferro Cardoso. No cursinho comecei a despertar para o jornalismo. Foi quando chegou a notícia de que haveria vestibular para o curso de jornalismo, em Campina Grande. Passei. Isso foi em julho de 2007. Fiquei três anos e meio lá. Na época do cursinho eu morava na casa de um irmão da minha mãe, na Rua Joaquim Fagundes, na Praça Augusto Leite.
ZONA SUL – Foi na faculdade de Campina Grande que surgiu seu interesse pela política?
BOSCO – Sim, no curso de jornalismo foi que passei a ter consciência social e humana. Como eu falei, em São Paulo era totalmente alienado. Na faculdade comecei a despertar vendo aqueles grupos, o sentimento de antiamericanismo... Como eu tive uma formação religiosa muito forte, ficava confrontando o comunismo com a religião. Minhas avós são católicas, vim dessa tradição. A mãe do meu pai era rezadeira, era beata, vivia rezando terços. Na época da universidade eu achava que o socialismo era bom. Mas não concordava com o comunismo, devido a minha formação. Não cheguei a pensar em ser guerrilheiro, mas tinha certa tendência de esquerda. Eu nunca entrei naquele fanatismo de pregar que tudo que é americano não presta. Porém, nunca gostei da política deles de tirar o que é nosso, de ter aproveitado o momento político brasileiro para apoiar o golpe militar de 1964. Eu sabia que se o americano era ruim, o russo poderia ser pior. Na minha lógica, ao invés de escolher entre um e outro a gente tinha que ser brasileiro mesmo.
ZONA SUL – E o jornalismo?
BOSCO – Sempre gostei de ler e de ir ao cinema. Aos 17 anos eu acompanhava Osni Damásio – que hoje também é jornalista – no mural que ele fazia no colégio e também nas cartas que ele escrevia para emissoras de rádio de ondas curtas, como as rádios Moscou, Vaticano, BBC e Voz da América. Na adolescência eu escrevia crônicas e mandava para as emissoras de rádio. Assinava com pseudônimos, tipo Johnny Boscóli, e ficava aguardando para escutar esses textos serem lidos. Ninguém sabia que era eu. Perto de concluir jornalismo, em 1980, passei em um concurso do IBGE para trabalhar no censo, como recenseador. Estudava pela manhã e fazia as pesquisas nas casas à tarde. Esse emprego me rendeu uma boa poupança. Com o dinheiro comprei meu primeiro paletó e paguei as despesas da minha festa da minha formatura. O trabalho no IBGE era com carteira assinada, apesar de provisório. Éramos regidos pela CLT. A turma que trabalhou comigo foi admitida definitivamente, depois de recorrer à Justiça. Eu não pleiteei esse direito porque preferi atender ao chamado de minha irmã para voltar a morar em Natal.
ZONA SUL – Tinha algum emprego certo na cidade?
BOSCO – Não, mas consegui um estágio na Rádio Rural. Eu recebia umas fichas para fazer ligações em orelhão e ia para a rua, entrevistar o povo. Eu não recebia salário. Fiquei lá até Orlando Caboré me indicar para fazer um trabalho de pesquisa na Fundação José Augusto. Era um levantamento sobre a história dos municípios. Fui para Serrinha e fiquei dois meses pesquisando. Vivi esse período na maior mordomia... Foi a partir daí que comecei a engordar. (risos). Depois de Serrinha, como gostaram do meu trabalho, me enviaram para Santo Antônio. Quando concluí o trabalho, não teve mais outra, acabou o emprego. Resultado: fiquei desempregado. Fiz concurso para a UFRN, em 1981. Nessa época a cachaça era o centro de tudo. Isso me lascou. Dos 300 candidatos, apenas seis foram aprovados para a prova prática. Eu estava entre eles. O emprego era no laboratório fotográfico do curso de jornalismo da Universidade. Na noite anterior à prova, enchi a cara na festa de aniversário de um sobrinho. Nem pensei que no dia seguinte tinha a prova. Quando cheguei na universidade, ainda estrava tremendo. Mandaram-me tirar uma foto, revelar e copiar. Não consegui nem colocar o filme na máquina. Não sei o que foi aquilo, mas fui reprovado.
ZONA SUL – Foi aí que você se mudou para Fortaleza?
BOSCO – Um parente do meu pai era dono de uma empresa de informática de Fortaleza que era ligada à Sistema Informática, de Natal. Esse parente do meu pai tentou conseguir um emprego pra mim na Sistema. Não consegui a vaga porque acharam que eu era comunista. O jeito foi ir trabalhar no Ceará. Isso foi em 1982. Comecei arrumando pacotes, embalando e despachando para os caminhões entregarem nas empresas. Daí, progredi e fui para a digitação. Cheguei até o setor de vendas, local onde se trabalhava de paletó. Era a turma que vendia os produtos, que firmava os contratos. Desisti porque vi que aquilo não dava para mim. Voltei para Natal e fui novamente procurar emprego. Nessa época meu pai tinha morrido, a fazenda estava abandonada e a minha mãe estava só. Fui morar com ela e trabalhar no jornal que Paulo Tarcísio estava montando.
ZONA SUL – Você demorou muito tempo com Paulo Tarcísio?
BOSCO – Não. Minha irmã conseguiu uma vaga pra mim no “trem da alegria” promovido pelo então governador José Agripino. Fui para a TV Universitária através daquele convênio com o SITERN. Rogério Cadengue me levou para lá. Fui pauteiro, coordenador de telejornalismo, redator, produtor, coordenador de rede, pauteiro, editor de textos e de imagens, entre outras atividades. Quando Geraldo Melo assumiu o governo, como eu era formalmente lotado na Secretaria da Educação, fui convidado para trabalhar na redação oficial de lá. Fiquei quatro anos, recebendo também uma gratificação. Nessa época Geraldo Melo acabou com os técnicos A, B e C e formou a categoria de Técnico de Nível Superior. Passamos a ganhar, como jornalistas, o equivalente a médico: 10 salários mínimos. Os professores ficaram putos, pois Geraldo Melo privilegiou somente os jornalistas e a polícia. Só que como o salário não era vinculado ao salário mínimo, em poucos anos a inflação comeu tudo.
ZONA SUL - Por que você pediu as contas do Estado?
BOSCO – Antes de sair, em 1990, houve outro concurso para trabalhar no censo do IBGE. Fernando Collor era o presidente da República. Fiz concurso para supervisor e passei.
A legislação permitia acumular com o emprego no Estado. Desde o primeiro, os censos no Brasil eram realizados a cada dez. Só esse, que deveria ter sido em 1990, passou para 1991. Collor aguardou ser aprovado o Regime Jurídico Único para não ser obrigado a efetivar quem trabalhasse no censo. Voltei para a TVU, no turno noturno, enquanto trabalhava no censo durante o dia. Terminado o censo, permaneci na TV. Em 1994, já no governo Itamar Franco, fui aprovado em um concurso para o Ministério da Educação. A prova foi em João Pessoa, em julho. No mês seguinte saiu o resultado: passei em segundo lugar. Eu não estava inscrito nas vagas de deficiente. No mesmo período passei para a Polícia Federal, para escrivão. Não fui aceito no teste físico.
ZONA SUL – O MEC lhe chamou?
BOSCO – Em virtude de o resultado do MEC ter saído perto das eleições, não podia haver
contratação. Foi adiada para o próximo ano. Minha vaga era em Cuiabá, no Mato Grosso. Na Delegacia do MEC de Natal me informaram que eu trabalharia em Cuiabá. Eu soube que o primeiro lugar havia desistido e que eu seria o primeiro a ser contratado. A vaga era minha, mas não pude ser nomeado, por causa das eleições. Pediram para eu adiantar a minha documentação e mandaram aguardar, pois a contratação seria em janeiro. Só que Fernando Henrique Cardoso, logo que assumiu a presidência, suspendeu todas as nomeações. O concurso tinha validade de dois anos. Esse primeiro prazo foi renovado para 1998. Mesmo assim, não fui chamado. Em 1997 eu ainda estava na TV-U. Resolvi ir a Cuiabá e, para isso, pedi uma licença especial de três meses. Um amigo meu, militar, estava terminando o tempo dele em Rondônia. Chamou-me para passar por lá, antes de ir a Cuiabá. Embarquei no ônibus, em Natal, em uma segunda-feira, às seis da tarde. Cheguei na sexta, ao meio-dia, em Porto Velho. Estava todo quebrado. Fiquei uma semana em Porto Velho. Logo ao chegar - como era o meu aniversário - fui logo para um cabaré, comemorar. Lá conheci uma mineira do cabelão. Era primeira. Fiquei uma semana com essa mulher. Apaixonei-me e decidi levá-la para Mato Grosso. Expliquei que estava indo morar em Cuiabá para assumir um emprego. Ela topou ir comigo. Essa mineira tinha uma filha. Foi expulsa de casa aos 16 anos, quando a menina nasceu. A criança foi criada pela avó. Passei a semana namorando com ela. O combinado era eu deixá-la em Pontes de Lacerda enquanto eu resolvia a vida em Cuiabá. Não deu certo.
ZONA SUL – Você chegou a ir mesmo até Cuiabá?
BOSCO – Sim. Fui apresentado como o novo funcionário que seria nomeado em 15 dias. Já tinha uma sala com computador, pronta pra mim. O chefe disse que eu ficasse esperando a nomeação, mas eu respondi que tinha que ir a Natal pegar minha roupa. Na verdade, viajei foi para Brasília. Fui no Ministério da Educação, procurar saber a quantas andava a minha nomeação. Estava na mesa do ministro Bresser Pereira. Voltei para Natal. O governo estava com um programa de demissão voluntária. Aproveitei e assinei minha demissão. Cresci os olhos, pois tudo indicava que eu seria nomeado e não poderia manter os dois empregos. Só que veio a crise e Fernando Henrique acabou com as nomeações. Fiquei desempregado. Com o dinheiro da rescisão, depois de 13 anos de serviço, comprei três carros e fui trabalhar com um amigo, alugando veículos. Paralelo, fui escrever como colaborador nos jornais de Natal. Um dia, entregando uma crônica no Diário, fui convidado para trabalhar por Osair Vasconcelos. Era para atuar no interior, em um projeto sobre os municípios. Era ano de eleição. O projeto que duraria até lá. Topei. Ganhava sete salários mínimos. Era dinheiro demais pra quem estava desempregado. Mesmo assim, botei banca: pedi, além do salário, uma assinatura do jornal.
ZONA SUL – O projeto durou mesmo até as eleições?
BOSCO - O projeto foi um sucesso tão grande que o caderno continuou, mesmo após a eleição.
Fiquei dez anos nesse trabalho, só que eles nunca assinaram a minha carteira. Quando a nova direção chegou no Diário, nem pôde me demitir, já que eu não tinha carteira assinada. Eu ia trabalhar todo dia, como se fosse bobo. Eles prometiam assinar a carteira e regularizar a minha situação. Nesse período que fiquei lá, junto com Paulo Tarcísio, revitalizamos a Rádio Poti. O projeto dos municípios passou a ser programa de rádio também. Mas isso durou pouco, logo em seguida a Rádio Clube tomou conta da Poti. Foi aí que aconteceram as demissões. O Sindicato dos Jornalistas botou um advogado e eu fui indenizado quando saí. Na verdade, eu tinha começado com sete salários mínimos, mas, no final, o salário não valia mais nada. Comecei a me endividar. Vendi um carro, um golzinho que tinha, para pagar o cartão de crédito. Os juros do cartão tinham engolido tudo. A locadora já tinha acabado há quatro anos.
ZONA SUL – Você casou? Tem filhos?
BOSCO - Vivi junto com uma mulher e tive uma enteada que me adotou. Hoje ela é minha filha, a Maria Fernanda. Ela me adotou: disse que eu era o pai dela, com dois anos de idade. Achei isso muito bonito. Passei um tempo com essa mulher. Depois que perdi o emprego, perdi a mulher também. Foi quando resolvi vender o carro e comprar um computador para voltar a estudar. Isso foi em 2009. Naquela época estavam ocorrendo muitos concursos. Depois de seis meses estudando, fiz concurso para o IBGE, para recenseamento. Passei, mas não me chamaram. Até então eu fazia concurso disputando as vagas normais. Foi quando um médico falou que eu podia utilizar o meu atestado de insuficiência física que me dispensou do serviço militar para pleitear a cota de portador de necessidade especial. Minha escoliose permitia isso. Resolvi tentar na área de jornalismo: passei em três. O primeiro que me chamou, em 2010, foi o Ministério da Saúde, em Brasília. Estou trabalhando nesse emprego até hoje.
ZONA SUL – Além dele, você também tem um blog.
BOSCO – Tenho esse blog desde 2006, quando trabalhava no Diário de Natal. As matérias que eu fazia, as dos municípios, eu aproveitava e colocava no blog. Foi na época do surgimento dos blogs. Como o meu trabalho era mais ou menos uma assessoria, eu coloquei ASSESSORN, mistura de Assessor com RN, de Rio Grande do Norte. Quando saí do jornal, uma das atividades que mantive foi escrever para o blog, mesmo sem receber remuneração nenhuma. O endereço é http://www.assessorn.com . A média de acessos chega a quase mil por dia. Além das notícias, no blog também estão disponíveis artigos que eu publiquei em vários veículos de comunicação. Pretendo reuni-los para lançar um livro. Tenho muita coisa que merece ser publicada.

7 comentários:

  1. Leitor do ASSESSORN, mando um abraço apertado para o jornalista Bosco Araújo e o cumprimento pela bela história de vida.

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  2. Caros,

    Apenas para esclarecimentos, eu sou o quinto filho de minha mãe; minha irmã Sueli foi o quarto. O namorado dela citado era Antônio Nilson, falecido no ano passado, em Natal. O marido de minha irmã Sônia que os acompanhei para SP chama-se Wilson Fernandes, hoje separados, o irmão dele era Iran, o Iranzão, falecido há cinco anos, em São Paulo. Os programas de Benito de Paulo os assistia no próprio auditório da então TV Tupi, no bairro Sumaré, na capital paulista, onde lá antes de retornar em 1975 passei nos testes para trabalhar na Credicard e Banco Mercantil de SP, mas só fui saber em Caicó e se tivesse voltado já estaria aposentado.

    Em relação às intolerâncias foram algumas vezes apenas na infância, já na adolescência e juventude aprendi a lição da conciliação, do respeito ao próximo, a grandeza da dignidade do ser humano, como pessoa capaz de compreender a vida como resposta ao que plantamos para colher depois, sem nunca esquecer de refletir que somos grãozinhos de areia diante da imensidão do cosmo.

    A publicação do livro é um projeto que tenho desde os artigos publicados nos jornais, iniciados no final dos anos 80, e que ao trabalhar no Diário de Natal, mas recentemente, o então diretor de redação Osair Vasconcelos me incentivava a concluir e publicá-lo. São fatos vividos e contados, a maioria, por meu pai em suas andanças cortando os estados do RN e Paraíba até o Sul de Pernambuco, montado em um burro-mulo durante duas décadas até se casar em 1947, e de outros causos da localidade Umbuzeiro e da minha época de universitário, morando numa república de estudantes chamada Consulado Caicoense, no edifício Palomo, centro de Campina Grande (PB). O livro já tem um nome provisório: “Ser tão Pedro só”, trocadilho entre sertão pedroso e meu pai Pedro, mas pegando o gancho do título da entrevista já pensei em: “Memórias e segredos de um Ser_tão Pedro_ so”. É esperar para ver. E ler!

    Grande abraço,

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  3. Um abraço para o entrevista, um grande homem.

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  4. Grande amigo que tive a honra de trabalhar e aprender ao lado dele! Pessoa maravilhosa... Abraços, João. Giovana Simoni

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  5. Valeu, Gigi. Eu que me sinto privilegiado por sua generosa companhia, minha nobre colega de trabalho!

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